O dia em que sobrevivi (1.º capítulo)
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Argumento
Há momentos que dividem a vida num antes e num depois.
Bem vistas as coisas, passamos a vida nisso, nesses momentos e nos outros antes e depois.
Há, no entanto, alguns cuja capacidade de cisão é superior. E há um que bate todos aos pontos. Pelo menos para mim, que julguei não haver depois.
Chamei‐lhe «incidente de percurso», o eufemismo que me ocorreu.
Um dito mal asmático levou‐me à porta do Vou‐e‐não‐sei‐se‐volto‐porque‐apenas‐Jesus‐ressuscitou‐ainda‐que‐tal‐afirmação‐não‐seja‐consensual‐e‐para‐cúmulo‐do‐desencontro‐de‐interesses‐estamos‐no‐Advento‐e‐parece‐Sexta‐Feira‐Santa. Era Dezembro, 19, acabava o ano de 2009.
Sem motivo aparente, os meus pulmões desistiram e cheguei à urgência em paragem respiratória. Sem dourar a pílula, quase morri. «Mais um bocadinho e isto tinha corrido mal!», foi o que me disseram.
Disseram‐me muitas coisas ao longo dos quatro anos e vários meses que antecederam aquele momento charneira, coisas que também acabaram por dividir a minha vida num antes e num depois.
Disseram‐me muitas outras depois, mas essas, talvez pela exaustão e saturação da minha capacidade de escuta e sobretudo pela incapacidade de crença, já não me dividiram a vida, apenas a travaram. Somente uma me importou, porque a vida é movimento e aquela mo devolveu.
Escrevi este relato na maca do hospital onde fui internada. Entreteve‐me o medo e sublimou‐me o caos.
Resumi mais tarde o curso e desfecho da minha história clínica que julgo poder ser útil e que, de tão rara, foi apresentada, nas jornadas 10 Ans du Service d’Analyse des Milieux Intérieurs de la Province de Liège, na Bélgica, pelo médico que me salvou e devolveu a saúde e a liberdade que ela me dá, o Dr. Pedro Mata.
Acredito que todos os colegas médicos que me observaram agiram de boa‐fé e na tentativa do melhor uso das suas competências e sei que quando somos colegas, apesar de falarmos a mesma linguagem, os assuntos clínicos que nos tocam acabam muitas vezes por originar complicações. A título de exemplo, de somenos importância, recordo, aquando da cesariana da minha primeira filha, a enfermeira que, ao pretender canalizar‐me uma veia, me disse sorrindo «Já sabe que pessoal de saúde acaba sempre por ser picado pelo me‐ nos duas vezes». Conseguiu o feito à primeira e espantou‐se, «Coisa rara! Não é habitual ser fácil com pessoal da casa...». Não imaginava eu que raro era, e é, o que me aconteceria anos depois.
Conheço pois os cantos à casa e o que ela gasta. E sei que o que é raro é raro e o que é frequente é frequente. Lamento, no entanto, que não se tenha procurado outras hipóteses diagnósticas mas optado por me colocar, de uma forma que eu senti desajeitada e forçada, em caixas que tanto me apertaram e me trouxeram sofrimento e dano durante quase 5 anos.
Cascais, Outubro de 2010
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