Mulheres Liderança Política e Media
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Introdução
O reconhecimento da igualdade entre homens e mulheres, consequência da Revolução democrática de 25 de Abril de 1974, é uma conquista que deve ser devidamente valorizada. Abriu no tempo a promessa de emancipação da população feminina, condicionada por um enquadramento legislativo e por práticas sociais e culturais que legitimavam a desigualdade e a subordinação. É uma evidência que, desde então, as mulheres registaram avanços notáveis em diferentes áreas, como sejam a educação, emprego, conjugalidade ou direitos reprodutivos. Porém, são muitas as vozes que criticam que essa progressão tem sido particularmente lenta na esfera política. Para diminuir a desproporção de género na representação política, a Assembleia da República aprovou, em 2006, a Lei da Paridade, que prevê a aplicação de quotas na elaboração das listas eleitorais. Este mecanismo foi ativado pela primeira vez nas três eleições realizadas em 2009 e, decorridos quase seis anos, carece de uma avaliação de impacto.
Na presente obra, que resulta da dissertação de doutoramento da autora [1], reflete‑se sobre a condição política feminina de uma perspetiva particular: propõe‑se a articulação da política e do jornalismo a partir da categoria de “género”. Este é um âmbito de investigação ainda pouco explorado, apesar do seu caráter óbvio, uma vez que o mundo político é inseparável do espaço de mediação jornalística, para onde confluem os poderes e onde se constrói a visibilidade pública por excelência. Os media lato sensu continuam a ser a fonte simbólica primária a partir da qual se forma a compreensão da realidade social e se moldam as perceções sobre o perfil, a competência e a relevância dos sujeitos políticos. O que torna a pesquisa inovadora é, na verdade, o facto de até à data poucas mulheres terem chegado ao topo da liderança política em Portugal.
Importa olhar para a formação histórica dos campos. Política e jornalismo. Ambos se orientam para o tornar público. Ambos se constituíram como domínios sociais dos quais as mulheres estiveram excluídas durante longo tempo e em que o acesso feminino conheceu resistências. Muitos jornalistas opunham‑se à entrada de mulheres nas redações. “Os homens reclamavam que o trabalho era demasiado árduo para as mulheres e que estas, expostas ao ambiente pouco polido e caótico da redação, perderiam os seus ideais elevados, os seus modos doces e ternos, de facto, a sua feminilidade” (Chambers et al., 2004: 19). As mulheres foram sendo admitidas como profissionais do jornalismo e como delegadas políticas, em número reduzido e em situações excecionais, ocupando áreas marginais, para corresponder a ou tratar de necessidades femininas específicas, menos valorizadas e mais trivializadas. Das jornalistas esperava‑se que desenvolvessem “reportagens ligeiras”, sobre “todo o tipo de trivialidades, incluindo as domésticas”, e que o seu trabalho correspondesse a um tipo de notícias mais leves e que fizessem “cócegas” aos leitores (Holland, 1998: 18). Já as primeiras representantes políticas foram relegadas para o assistencialismo e, mais genericamente, para matérias relacionadas com uma conceção ideologizada e idealizada do universo feminino.
O jornalismo feminizou‑se (embora as direções dos meios a um ritmo menos acelerado), a política continua uma arena masculina. Em Portugal, nas legislativas de 2011, a proporção de mulheres eleitas correspondeu a 26,5%. No momento da constituição do 19.º Governo, em Junho de 2011, as governantes femininas correspondiam a 17%. Na história parlamentar, uma única mulher foi eleita Presidente da Assembleia da República, em 2011. Por uma única vez, em 1979, uma mulher foi indigitada para o cargo de Primeira‑Ministra. Até à data nenhuma mulher desempenhou funções como Presidente da República.
Do prisma das representações simbólicas veiculadas, como lembra Silveirinha (2012: 92), as ligações entre a comunicação e as desigualdades das mulheres estiveram sempre presentes nas diversas articulações do feminino. Sobretudo a partir dos anos de 1970, os conteúdos mediáticos passaram a constituir uma “área de preocupação da agenda feminina” (Silveirinha, 2006: 5), no pressuposto de que “muito do poder social e político se jogava na representação” (Silveirinha, 2004: 5).
O primeiro problema coloca‑se ao nível da (in)visibilidade. Pesquisas convergem num diagnóstico de sub‑representação das mulheres na informação. Em 2010, essa presença foi quantificada em 24% pelo Global Media Monitoring Project (23% em Portugal). Outros estudos nacionais confirmam a expressão desmaiada de vozes femininas. Segundo os resultados de 2011 da monitorização dos jornais televisivos da noite efetuada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social, 72,9% dos atores principais das notícias analisadas na SIC eram homens, e apenas 11,1% mulheres; e, na TVI, 74,3% dos protagonistas noticiosos eram homens e 8,5% mulheres (ERC, 2012) [2]. O mesmo padrão repete‑se nos convidados dos programas informativos televisivos de três canais generalistas (RTP1, SIC e TVI) e três canais temáticos de informação, emitidos entre Setembro de 2010 e Junho de 2011: 84% foram homens, 16% mulheres (Baptista, 2012).
A questão é mais complexa do que apontar esta sub‑representação, pois está diretamente associada às lógicas da mediação.
Como salienta Mário Mesquita [3], “o jornalismo é a componente dos dispositivos mediáticos que mais de perto se relaciona com a visibilidade dos atores políticos, económicos, culturais, artísticos e desportivos”. Complementarmente, vários estudos no âmbito da sociologia do jornalismo identificam a “notoriedade do agente principal do acontecimento” como um dos mais principais valores‑notícia na seleção informativa (Traquina, 2002: 188). Para que as mulheres adquiram visibilidade mediática, não é suficiente que estejam mais presentes nas instituições políticas, mas também que ocupem funções de maior responsabilidade. Com efeito, o desempenho de cargos cimeiros, pela centralidade desses lugares, o poder de decisão e as responsabilidades inerentes, “assegura uma presença regular nos media e qualifica quase automaticamente os seus ocupantes como interlocutores privilegiados dos jornalistas” (Baptista, 2012: 69‑70).
Na produção jornalística, há uma tensão entre o compromisso com os princípios da igualdade e da não‑discriminação e o trabalho quotidiano, em que os critérios de seleção informativa podem reproduzir, e mesmo agudizar, as desigualdades entre homens e mulheres na distribuição de poder na sociedade. Deste modo, admite‑se que as lógicas editoriais contemporâneas poderão contribuir para agravar o fenómeno de glass ceiling, ao dar voz quase exclusivamente a titulares das posições de topo... às quais, e será forçoso repetir esta ideia, raramente as mulheres chegam.
As investigações dedicadas à inter‑relação entre género, media e política partilham ansiedades, não só em torno da quantidade, como também da qualidade das representações mediáticas, atendendo aos seus impactos no exercício político e na democracia deliberativa. O género dos atores políticos interfere, explícita ou implicitamente, nas práticas discursivas do jornalismo? A política tem género sob o olhar dos e das jornalistas?
Estas são interrogações centrais que orientam o aprofundamento desta problemática. O laço invisível que une os campos político e jornalístico através de representações simbólicas é aqui explicitado através de dois estudos de caso, ambos recortados do período histórico pós‑democrático em Portugal, em que duas mulheres ascenderam a lugares políticos de topo e adquiriram elevado perfil mediático.
O primeiro reporta‑se a 1979, quando Maria de Lourdes Pintasilgo foi convidada pelo Presidente da República, Ramalho Eanes, a formar o V Governo Constitucional, que ficou conhecido como o “Governo dos 100 dias”. Lourdes Pintasilgo tornou‑se a primeira Primeira‑Ministra – e até agora única – em Portugal e a segunda da Europa, depois da eleição de Margaret Thatcher, em Inglaterra, em Maio do mesmo ano. O segundo estudo de caso situa‑se temporalmente na primeira década do século XXI e acompanha três momentos da carreira política da social‑democrata Manuela Ferreira Leite, a primeira mulher ministra das Finanças (em 2002) e a primeira mulher presidente de um grande partido (é eleita líder do PSD, em 2008), pelo qual se candidata às eleições legislativas de 2009, defrontando o Primeiro‑Ministro incumbente, José Sócrates. Deve notar‑se a coincidência de, em 2009, terem sido aplicados pela primeira vez os mecanismos legais da paridade de género na composição das listas eleitorais, contra os quais Ferreira Leite se bateu.
Maria de Lourdes Pintasilgo e Manuela Ferreira Leite exibem percursos e perfis marcadamente distintos, mas também revelam alguns paralelismos interessantes.
Nascidas com uma década de diferença (Lourdes Pintasilgo em 1930 e Ferreira Leite em 1940), ambas se licenciaram em áreas “masculinas”, Engenharia Química e Económicas. No início dos seus trajetos profissionais, circulam entre homens: Lourdes Pintasilgo é a primeira técnica superior dos quadros da Companhia União Fabril, Ferreira Leite a única mulher da equipa do então Centro de Estudos de Economia e Finanças da Fundação Calouste Gulbenkian e a segunda assistente de Economia no então ISCEF (atual Instituto Superior de Economia e Gestão). As duas mulheres chegam à política aos 39 anos, não por declarada iniciativa própria ou ambição, mas pela mão de homens que admiram e com os quais mantêm relações de amizade. Convergem na noção da política como missão, serviço e dever. Ambas são profundamente católicas.
Contrastam noutros aspetos fundamentais, como os traços de personalidade, as referências culturais, as escolhas pessoais. Distanciam‑se radicalmente no posicionamento quanto às “questões femininas”. O percurso de Lourdes Pintasilgo está intimamente associado, na teoria e na ação, às lutas das mulheres e ao seu contributo específico, apoiado na sua “diferença”, para a comunidade. Ferreira Leite, além de não revelar sensibilidade por esta temática, esgrimiu argumentos, enquanto deputada, contra a adoção de políticas públicas que distinguiam a situação das mulheres.
Maria de Lourdes Pintasilgo e Manuela Ferreira Leite foram “primeiras” no exercício de cargos de responsabilidade na alta política. A notoriedade pública e mediática que alcançaram nessa qualidade oferece uma rara oportunidade de observação dos modos de representação simbólica da política no feminino. Os resultados da análise permitirão recensear estilos particulares de liderança construídos e projetados pelos media, bem como, eventualmente, identificar padrões de cobertura jornalística baseados em assunções de género (Norris, 1997), detetados em estudos levados a cabo noutros países.
As investigações da mediação jornalística da política não podem ignorar os contextos históricos particulares. Por exemplo, no final dos anos de 1970, não é possível empreender a análise ignorando a instabilidade dos jovens órgãos políticos ou o caráter extremado da luta pelo poder sob o efeito da bipolarização da vida partidária entre “esquerda” e “direita”. Não se pode ainda ignorar que os meios de comunicação revelam graus variáveis de compromisso com posições político‑ideológicas, o que condiciona a sua intervenção no combate político.
Nestes intrincados contextos, um dos desafios consiste em destrinçar enviesamentos no tratamento jornalístico baseados no género dos atores políticos retratados. Antecipa‑se que, entre 1979 e a primeira década do século XXI, se registará uma evolução no sentido de uma maior naturalização da participação política feminina e da ultrapassagem de esquemas dicotómicos e estereotipados de representação. Esta é, claro, uma hipótese que terá de passar pelo crivo da análise dos jornais.
A esfera política é aqui delimitada a uma aceção formal – o domínio do poder convencional. Segundo Henderson e Jeydel (2010: 6), este é “o mundo da política que se desenrola em instituições governamentais formais, como parlamentos/ legislaturas e órgãos executivos, e inclui o comportamento político, regulado pelo Estado, que se dirige à eleição de pessoas para essas instituições”. A amplitude das manifestações políticas da sociedade não se esgota na configuração formal do campo, sendo pertinente sublinhar, no entanto, que historicamente foi destas instituições que as mulheres ficaram arredadas. Pretende‑se analisar uma realidade em que as decisões “importam e contam”. Os titulares do poder político têm a prerrogativa de fazer cumprir as suas decisões e detêm posições de autoridade (Paxton e Hughes, 2007: 3). Seria de igual modo pertinente, como sugere Victoria Camps (2001: 12), adotar um conceito lato de política, como “metáfora da tomada de decisões”, tendo em mente outros domínios relevantes. Porém, restringir o objeto de análise permite compreender a especificidade de um domínio com as suas instituições e leis próprias de funcionamento.
A obra está organizada em duas partes. A primeira, de contextualização teórica e histórica, é composta por dois capítulos, nos quais se percorrem a emergência da cidadania feminina e os seus limites nas democracias ocidentais, e se discute a pertinência da categoria de género para descrever a participação política. Um segundo capítulo introduz a temática dos media e do jornalismo, abordando‑se o impactos da feminização das redações sobre as normas profissionais, os padrões noticiosos de tratamento das mulheres na política e a mobilização de estratégias de comunicação baseadas no género. Na segunda parte é descrita a análise dos jornais, cuja nota metodológica é explicada no Apêndice 1. As conclusões, bem como um conjunto final de reflexões sobre o tema, são apresentados no último capítulo.
[1] A dissertação de doutoramento foi submetida à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, sob orientação da professora Cristina Ponte. A obra é também devedora da participação da autora no projeto “Política no Feminino”, desenvolvido no Centro de Investigação Media e Jornalismo. Os contributos resultantes deste projeto de investigação e aqui utilizados são devidamente referenciados.[2] O restante valor que perfaz 100% corresponde às categorias “ambos os géneros” e “não identificável”.[3] Mário Mesquita, “Quando o Superman se disfarça de Clark Kent”, Público, 26/09/2004.
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