Zita, a Imperatriz Coragem (1.º Capítulo)
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1. UM SÉCULO, UMA VIDA
Viena, 1 de Abril de 1989.
Em frente da igreja dos capuchinhos, o cocheiro puxa as rédeas e os seis cavalos pretos suspendem a marcha. À direita, os escudeiros uniformizados trazem braçal de luto. O monumental carro fúnebre é encimado por um bando de águias bicéfalas. E pela coroa imperial.
Seis tiroleses de vestes encarnadas, chapéus verdes e plumas imaculadas tiram a urna do carro e transportam‑se até ao pórtico, aonde são aguardados pelo mestre‑de‑cerimónias. Este bate três vezes à porta com a bengala de castão de prata. No interior, o irmão porteiro também aguardava este momento.
«Quem pede licença para entrar?»
O mestre‑de‑cerimónias responde:
«Zita, imperatriz da Áustria, rainha coroada da Hungria, rainha da Boémia, da Dalmácia, da Croácia, da Eslavónia, da Galícia, da Lodoméria e da Ilíria; rainha de Jerusalém; arquiduquesa da Áustria, grã‑duquesa da Toscânia e de Cracóvia; duquesa da Lorena e de Bar, de Salzburgo, de Steyr, da Caríntia, da Carníola e da Bucóvina; gr‑princesa da Transilvânia, margravina da Morávia; duquesa da Alta e da Baixa Silésia; de Modena, Placência e Guastalla; de Auschwitz e de Zator, de Teschen, do Friul, de Ragusa e de Zara; condessa de Habsburgo e do Tirol, de Kyburg, Gorizia e Gradisca; princesa de Trento e de Brixen; margravina da Alta e da Baixa Lusácia e da Ístria, condessa de Hohenembs, Feldkirch, Bregenz e Sonnenburg; senhora de Trieste, de Kotor, grande‑voivodina da voivodia da Sérvia; infanta de Espanha, princesa de Portugal e de Parma.»
«Não conheço.»
O mestre‑de‑cerimónias volta a bater três vezes à porta.
«Quem pede licença para entrar?»
«Sua Majestade, Zita, imperatriz e rainha.»
«Não conhecemos.»
A bengala volta a descer por três vezes sobre o batente.
«Quem pede licença para entrar?»
«Zita, ser mortal e pecador.»
«Entre.»
Viena, 25 de Novembro de 1916.
Os sinos da cidade tocam em dobre. Os restos mortais do imperador Francisco José saem da catedral de Santo Estêvão. O cortejo fúnebre encaminha‑se para a cripta dos capuchinhos, que será a última morada do imperador, como o foi de todos os Habsburgo. Também desta vez será necessário suplicar por três vezes aos monges – em soberba alegoria ao despojamento da morte – que abram o seu santuário ao velho monarca.
O cortejo é encabeçado pelo sucessor de Francisco José. Carlos I segue de cabeça descoberta. Tem vinte e nove anos, e vai avaliando o peso esmagador das suas novas responsabilidades. Sabe bem que não conseguirá alcançar o seu objectivo – retirar a Áustria do conflito que devasta a Europa, salvar a Dupla Monarquia – sem pôr de certa maneira em causa a herança de seu tio‑avô, que reinava desde 1848. A começar pela rígida etiqueta espanhola da corte de Viena. Assim, Carlos recusou‑se a desfilar sozinho atrás do defunto. A seu lado, caminham sua mulher, a imperatriz Zita, e seu filho, o príncipe herdeiro, símbolos da continuidade dinástica. Ela, coberta de preto da cabeça aos pés, tem vinte e quatro anos. Oto, todo de branco e de caracóis louros, festejou recentemente o seu quarto aniversário. Esta inovação num cerimonial imutável chocou a velha guarda. Mas o povo compreendeu, e aplaudiu.
Após as exéquias, o pesado carro fúnebre voltará para Schönbrunn, de onde só voltará a sair em 1989.
Feita imperatriz em 1916, quando o marido, Carlos de Habsburgo, subiu ao trono da Áustria‑Hungria, Zita nascera na Europa dinástica do século XIX. Frequentara a corte de Francisco José que, por sua vez, se lembrava de, em criança, ter estado sentado ao colo do duque de Reichstadt, filho de Napoleão. Era bisneta da duquesa de Berry. E desaparecia em 1989, com quase noventa e sete anos, numa altura em que o século XX estava a findar.
Zita: um século, uma vida; que vai do czar Alexandre III a Gorbatchev; do papa Leão XIII a João Paulo II; de Guilherme II a Helmut Kohl; de Félix Faure a François Mitterrand. Coroada quando a batalha de Verdun estava no auge, só por pouco não assistiu à I Guerra do Golfo. Desde a sociedade rural até à revolução informática, do fiacre ao satélite, esta mulher assistiu à destruição do império austro‑húngaro, à abolição de uma dezena de monarquias europeias, a duas conflagrações mundiais, ao marxismo e ao nazismo, à guerra fria – e, finalmente, ao crepúsculo do comunismo.
Zita, ou a vida de uma imperatriz. Destronada em 1918, após ter reinado apenas dois anos, tal não impediu que fosse soberana até à morte.
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