Calista, a Escultora Grega (1.º capítulo)
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Capítulo 1 – SICA VENÉRIA
Não havia província do vasto Império Romano, na forma que ele tinha em meados do século iii, onde a Natureza ostentasse trajo mais faustoso ou mais jovial do que na África Proconsular, um território que tinha em Cartago a sua metrópole, e de que Sica podia ser considerada o centro. Sica, sede de uma colónia romana, assentava na encosta alcantilada ou íngreme de um monte integrado numa cadeia de colinas, que faziam parte de uma cadeia montanhosa que ocupava a zona situada a norte e leste da cidade. Esta região selvagem e estéril apresentava marcado contraste com a paisagem que se estendia a oeste e sul, para onde se abria uma vasta extensão de campos sorridentes e bosques exuberantes cobertos de mil tonalidades, que ia finalmente acabar nos sucessivos estratos do Atlas e nas indistintas e fantásticas formas das montanhas da Numídia. As imediações da cidade eram ocupadas por jardins, vinhas, prados e campos de milho, atravessados ou rodeados, aqui por nobres avenidas de árvores ou pelo que restava de florestas primevas, ali pelos pomares que a riqueza e o luxo tinham criado. O viajante que percorresse esta espaçosa planície – pouco acidentada, é certo, quando comparada com as alturas que a cidade tinha por trás e com os picos e escarpas que contornavam o horizonte para sul e ocidente – acabaria por descobrir, com a luz e as sombras que a percorriam a par do sol, uma diversidade de colinas e vales, de elevações e cavidades, com laranjais e pomares, olivais e palmares nos locais mais adequados das encostas. Por entre a massa de verdura, que espessava ainda mais no contorno do oeste para norte, avistavam‑se a intervalos dois trilhos, abrindo perseverantemente caminho até à costa do Mediterrâneo, um na direcção da antiga rival de Roma, o outro no sentido de Hipo Régio, na Numídia. O turista talvez se queixasse da falta de água na paisagem; mas o camponês da terra ter‑lhe‑ia explicado que só o olhar tinha razões para se sentir descontente, pois a espessa folhagem e a superfície irregular tinham até dificuldade em ocultar aquilo que a mãe natureza proporcionava em proporções nada mesquinhas. O Bágrada, que nascia nos cumes do Atlas, compensava em profundidade aquilo que lhe faltava em extensão de leito, mergulhando a rápida torrente na terra fértil e benévola, até que, depois de passar por Sica, ia desaguar perto de Cartago. E o Bágrada era apenas o maior de uma série de rios, quase todos seus afluentes, que o iam tornando progressivamente mais fundo e mais amplo. Dos riachos mais largos tinham sido desviados canais com vista à irrigação das terras, e os ribeiros que nasciam do cascalho que formava o solo das encostas foram contemplados com margens artificiais de pedras lascadas e leitos de seixos; e, onde não havia correntes nem riachos, cavaram‑se poços, alguns deles com profundidade assinalável, de tal maneira que, em alguns casos, o esguicho de água fora tal, que afogara os zelosos operários que tinham sido os primeiros a alcançá‑la. E, se eram estes os recursos das localidades em estações menos favorecidas, uma chuva intensa cobria toda a região durante metade do ano, e o intenso orvalho nocturno compensava o tributo cobrado de dia pelo sol africano.
Por sobre toda esta superfície acidentada e pelo meio dos bosques, a distâncias variadas umas das outras, avistavam‑se as quintas e as aldeias deste território satisfeito. Era uma época em que o orgulho da arquitectura estava em todo o seu esplendor; edifícios públicos e privados, mansões e templos, expandiam‑se a partir das cidades de mercado e das vilórias como que a partir de um centro, algumas em pedra e mármore, mas muitas feitas daquele composto de terra fina bem comprimida em estruturas pela qual os sarracenos viriam a tornar‑se famosos, e das quais ainda chegaram alguns exemplares aos nossos dias, as superfícies tão sólidas, os ângulos tão bem marcados como quando foram erigidas. Dispersas pelas colinas e as escarpas, coroadas por basílicas e templos, radiosas do sol, encontravam‑se as cidades da província ou das redondezas, Tiburcicúmbria, Tuga, Láribo, Siguessa, Sufetula, e muitas outras; e ao longe, num planalto elevado do Atlas, discernia‑se a Colónia Cilitana, que se tornara famosa cerca de cinquenta anos antes da data sobre a qual escrevemos pelo martírio de Esperato e seus companheiros, decapitados por ordem do procônsul por se terem recusado a jurar pelo génio de Roma e do imperador.
E se o espectador se colocar, não propriamente em Sica, mas um pouco mais para sudeste, na colina sobre a qual se ergue a casa de Agélio, toda a cidade lhe entra na imagem. Há quem suponha que o nome de Sica Venéria deriva de Succoth Benoth, ou seja, «tendas das filhas», que o autor inspirado afirma ser objecto de um culto pagão na Samaria; se assim for, a cidade terá sido fundada por colonos fenícios. Seja como for, as divindades púnicas nunca deixaram de estar presentes no local; os templos do Hércules de Tiro e de Saturno, cenário anual de sacrifícios humanos, deixavam‑se ver sem dificuldade, embora tanto estes como os restantes edifícios religiosos parecessem pequenos em comparação com o misterioso santuário dedicado aos sensuais ritos da síria Astarte. Os banhos públicos, um teatro, um Capitólio a imitar o de Roma, um ginásio, os contornos de um pórtico, uma estátua equestre em bronze do imperador Severo encontravam‑se agrupados no alto das ruas estreitas e sinuosas de uma cidade que ocupava toda a colina. Ao centro, jorravam de uma fonte extraordinária quantidades imensas de água por minuto, uma fonte que a gratidão supersticiosa dos habitantes tinha encerrado no peristilo de um local sagrado. Lá bem ao fundo, em direcção ao norte, numa zona que não se avistava do ponto, estávamos instalados, havia uma escarpa de rocha que, vista de longe, do lado do Mediterrâneo, conferia à cidade o mesmo aspecto impressionante que tem a cidade siciliana de Castro Giovanni, a Ena da antiguidade.
E se agora afastarmos os olhos da paisagem, seja dos objectos mais próximos ou mais distantes, para finalmente os poisarmos no local de onde temos estado a observá‑la, encontraremos outro tanto a que prestar atenção e como fonte de admiração. Encontramo‑nos no centro de uma herdade de um proprietário abastado, constituída por diversos campos e jardins, separados uns dos outros por sebes de cactos e de aloés. No sopé da colina, que se inclina do lado mais afastado de Sica em direcção a um dos afluentes do rio caudaloso e barrento a que fizemos referência, um grande pátio ou horta, interceptado por uma centena de riachos artificiais e dedicado ao cultivo do belo e odorífero khennah. Um frondoso palmar parece triunfar na frescura da beira da água, erguendo os ramos agradecidos em direcção ao céu. Nos campos localizados um pouco mais acima, na encosta da colina, terminou já, ou está a terminar, a colheita da cevada; e apenas restam nos campos o incessante e importuno canto das cigarras e as primárias tendas de canas e juncos onde os rapazes do campo encontravam abrigo do sol quando, no princípio do mês, enxotavam as miríades de pintarroxos, pintassilgos e outras avezinhas que, como acontece em toda a parte, travavam com o proprietário humano uma batalha pela posse dos grãos. Na encosta de sudoeste, uma vinha muito bem cuidada, cujos sarmentos, embora pequenos, lançam já compridas sombras para oriente. Está povoada de escravos, cujos chapéus de abas largas dão testemunho do poder abrasador do sol, ao passo que o subligarium – uma protecção que vai desde o cinto até aos joelhos, aqui de ocorrência menos frequente – chama a atenção para o calor opressivo. Os escravos tratam de cortar os galhos inúteis, nascidos com os últimos aguaceiros da Primavera, e de torcer aqueles que prometem fruto, moldando‑os em posições onde se encontrem protegidos, quer da brisa, quer do sol. Tudo exemplifica aquela estação de graça e felicidade sobre a qual os grandes poetas latinos compuseram hinos de beleza pagã; aquela estação em que, após seis meses de grandes chuvas e cruas neblinas, de ventos penetrantes e caprichosos raios de sol, a poderosa mãe se manifesta de novo, derramando os recursos do seu ser interior para vida e usufruto de todas as porções do vasto todo – ou, nas palavras de um bardo contemporâneo,
Quando da terra árida, até agora
Deserta e nua, sem graça nem adorno,
Irrompe a erva macia, cuja verdura veste
Sua face universal de um verde agradável;
Nessa altura, ervas de todo o género, a súbita flor,
Abrindo as diversas cores e tornando alegre
O coração, se dilatam suaves; e, ainda mal estas abriram,
Florescem já os ramos da vinha, estende‑se
A cabaça inchada, ergue‑se o caloso junco,
Combativo nos campos, e o humilde arbusto,
E o silvado de implícito pêlo eriçado; por fim
Surgem, como numa dança, as majestosas árvores, e estendem
Os ramos cheios de copiosos frutos, ou ornamentam‑se
De flores; de bosques estão as encostas coroadas
De tufos e vales, e os lados das fontes
Com margens ao longo dos rios; esta terra parece agora
Um céu, a mansão onde os deuses habitam,
Ou por onde passeiam deliciados, cujas sombras secretas
Adoram inquietar.
Os versos de um antigo canto grego erguem‑se em tom levemente queixoso dos matos que contornam o carreiro das mulas, um carreiro bem vincado no solo, que vai desde as portas da cidade até à corrente de água; e um jovem, que tem aspecto de ser o auxiliar do administrador da herdade, salta do carreiro e avança em direcção aos trabalhadores que se ocupam das vinhas. Os olhos, o cabelo e as feições do rapaz falam da Europa; as maneiras têm qualquer coisa de timidez e reserva, mais do que de rusticidade. O jovem usa uma simples túnica encarnada de meia manga que lhe dá pelo joelho, presa à cintura com um cinto; e tem as pernas e os pés protegidos por botas, que lhe chegam a meio da perna.
– Ah, Sansar! – exclamou em voz alegre e afável, dirigindo‑se a um dos escravos. – Essa maneira de tratares dos ramos parece‑me pior que a minha; mas é difícil modificar a maneira de trabalhar de um velho como tu. Não prendes os rebentos que não cortas, deixa‑los soltos, e o primeiro boi que vier puxar o arado pelos campos no mês que vem dá cabo deles.
O rapaz exprimiu‑se em latim; o homem compreende‑o e responde‑lhe na mesma língua, embora com desvios da pureza de pronúncia e da sintaxe, não sem paralelo com o linguajar dos negros das Índias Ocidentais.
– Ai, ai, patrão – disse –, ai, ai! Mas é um erro usar o arado.
A forquilha faz um trabalho muito mais asseado, e as uvas já não correm perigo. Eu escondo a gavinha por trás da folha para a proteger do sol, que é o único inimigo que temos a recear.
– Ah, mas é que a forquilha não levanta tanto pó como o arado e o gado pesado que o arrasta – contrapôs Agélio. – E o dito pó protege melhor a gavinha do que a sombra da folha.
– Mas aqueles animais enormes – retorquiu o escravo – cavam sulcos enormes e destroem o campo.
– Não vale a pena discutir com um tratador de vinhas cujas teorias ficaram formadas muito antes de eu ter nascido – rematou Agélio com bom humor, prosseguindo para o jardim, que ficava a seguir.
No jardim, se assim se lhe pode chamar, havia outras indicações do agradável mês pelo qual passava o ano. Tratava‑se de um espaço com vários hectares de extensão, de um amplo campo semeado de roseiras; por esta altura, preparava‑se a recolha da essência pela qual várias zonas deste país são, ainda hoje, famosas. Estavam ali reunidos mais uma série de trabalhadores, vigiados por um homem de meia‑idade cuja atitude pragmática, severa e brusca dava a entender estar‑se em presença do próprio administrador.
– Passas a vida aqui! – observou ele – Até parece que és um escravo, e tu és um romano, meu amigo. Mas os escravos estão a comemorar os Saturnais; servem o mui generoso e bem‑aventurado, a quem não prestam culto. Porque não estás a divertir‑te na cidade?
– A divertir‑me na cidade? – perguntou Agélio. – Não te lembras do que dizia o velho Hiempsal sobre as pessoas que têm um pé na chinela e outro no sapato? Se eu passasse o meu tempo na cidade, não se fazia nada. Pensei que me tinhas contratado para estar aqui, e não para estar na cidade.
– Ah – respondeu o outro –, mas nesta altura o império, o génio de Roma, os costumes do país, exigem que assim seja; e acima de tudo a grande deusa Astarte, de boca jovial e jucunda. Não conheces os versos? Não contrariar a Natureza, não discordar do grande sistema do universo.
A face de Agélio foi toldada por uma nuvem de confusão, ou de angústia; pareceu fazer menção de falar, mas por fim comentou:
– A haver pecados num servo, que seja esse, parece‑me a mim.
– Eu sei como vocês são – retorquiu Vitrício –, vocês os coribântios, ou frígios, ou judeus, ou lá como é que se chamam. Hoje em dia são tantas as religiões, e todas tão fantásticas, que uma pessoa se perde! Vai enforcar‑te na porta de tua casa, se estás farto da vida e és um homem sensato. Como é que um homem que tem a cabeça no sítio pode achar que vale a pena viver mas não vale a pena gozar a vida?
– Eu sou uma pessoa calma – respondeu Agélio. – Gosto do campo, que a ti te parece monótono, não me agrada a ostentação da cidade. Gostos não se discutem.
– Da cidade! Nem precisas de ir a Sica – retorquiu o administrador da herdade. – Tudo quanto era de Sica saiu da cidade e espalhou‑se pelos campos, pelos pomares, pelas margens do rio. Ergue os olhos, homem vivo, abre os ouvidos, e deixa entrar o prazer. Sê passivo perante o suave alento da deusa, e ela encher‑te‑á de êxtase.
Vitrício tinha razão. Estavam a decorrer os solenes dias da festa de Astarte; de Astarte, a famosa divindade de Cartago e das cidades dela dependentes, uma deusa que Heliogábalo tinha recentemente introduzido em Roma, e que já fora, sob diversos aspectos, Urânia, Juno e Afrodite, conforme encarnasse a ideia do filósofo, do estadista ou do povo: superior e intelectual como Urânia, majestosa e autoritária como Juno, sedutora como a deusa da sensualidade e do excesso.
– Aqui está o filho de um dos melhores e mais honestos militares que alguma vez brandiram a lança – resmoneou Vitrício –, até que, nos últimos anos, um deus infernal se ofendeu com ele e o sobrecarregou, a ele aos dele, com uma das superstições mais absurdas que por aqui abundam como serpentes. Na verdade, ele já era velho de mais para sofrer muito com o facto; mas a superstição revelou a sua natureza azeda nestes rebentos mais novos. É bom servo, mas tem a praga nos ossos e vai apodrecer.
As reflexões do subordinado eram diferentes:
– Até o ar peca neste dia! – exclamou. – Oh, que eu não encontre os vícios da cidade nestas obras de Deus! Infelizmente, a suave natureza, filha do Omnipotente, é posta ao serviço do maligno, e serve‑o ainda melhor que a cidade. Oh, belas árvores e lindas flores, oh, sol brilhante e ar balsâmico, em que prisão vos encontrais, e como gemeis até serdes dela redimidos! Sois escravos, mas não o sois por vontade própria, ao contrário do homem; mas como podereis ser voltados para propósito mais nobre? Quando terá fim esta vasta, esta sólida instituição de erro, este íncubo de muitos milhares de anos? Vós próprios, meus caros, sereis anulados primeiro. Seja como for, esta noite a via pública não é lugar para mim. Eles não tardam aí, depois da abominável pândega.
De vez em quando, ouvia‑se por entre as árvores dos bosques um som de vozes e cornetas que parecia proceder dos grupos que por eles dispersavam; e o cada vez mais pronunciado crepúsculo acolhia luzes que circulavam por entre a verdura. A casinha onde Agélio vivia ficava do outro lado de um caminho que atravessava a colina; acabava ele de iniciar este percurso quando deparou com um grupo de folgazões, que regressavam de um dos cenários da ímpia festança. Vinham vestidos de festa – os que vinham vestidos –, trazendo símbolos da idolatria na testa e nos braços; alguns estavam embriagados e havia entre eles uma profusão de mulheres.
– Não foste participar no culto, jovem? – perguntou uma delas.
– Tem um ar gracioso, mas foi atingido pelas Fúrias – comentou outra. – Conheço o género.
– Por Astarte – interveio uma terceira –, o rapaz é um daqueles gnósticos manhosos! Já o tenho visto, tem um ar de cão vadio. É uma das crias de Plutão, primo direito de Cérbero, e chama‑se Canibal.
A esta deixa, começaram todos a gritar:
– Canibal, Canibal, está aqui um rapaz que te conhece. Velhote, vem connosco – e a que tinha falado fez menção de se atirar a ele.
Ao ver isto, Agélio, que até então passara calmamente por eles, recuou dois ou três velozes passos e afastou‑se do grupo, pondo‑se em segurança. Uma das mulheres gritou:
– Olha o sapo! Já estou a ver quem ele é. É um feiticeiro, come criancinhas. Não o viram fazer aquele sinal? É um feitiço. A minha irmã também faz; a idiota deixou‑me e foi‑se juntar a eles. Está sempre a fazer aquele sinal – e, dizendo isto, fez uma imitação do sinal da cruz. – Ele é cristão, dêem cabo dele! Senão transforma‑nos a todos em animais.
– Cérbero lhe morda! – guinchou outra. – Este suga o sangue! – E, pegando numa pedra, atirou‑lha; a pedra roçou pela orelha do rapaz no momento em que este lhes desapareceu da vista. Seguiu‑se uma gritaria de ódio e desprezo. – Onde está a cabeça do burro? Acendam as luzes, acendam as luzes! Dêem cabo dele! Foi por isso que ele não esteve lá em baixo com as pessoas de bem.
E desataram a cantar uma toada blasfema, cujos sentimentos nem sequer nos deteremos a imaginar, quanto mais a converter em palavras.
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