Catarina, a Grande (1.º capítulo)

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CAPÍTULO UM

 

A menina de quatro anos cheia de vida e sem qualquer beleza especial aproximou-se do rei e esticou-se para puxar pela jaqueta.
Tinham-lhe ensinado a beijar as roupas das pessoas mais velhas como um sinal de reverência, mas o homem entroncado, de faces coradas, que a viu aproximar-se com uma expressão séria vestia uma jaqueta que era demasiado curta, o que lhe dificultava fazer o que a mãe ordenara. Um olhar de desaprovação, quase de desdém, estava estampado nos traços fisionómicos harmoniosos da criança. Os enormes olhos azuis-claros arregalados, brilhantes de inteligência e sensibilidade, observavam sem medo a cara severamente imponente. Depois, virou-se e dirigiu-se ao local onde a mãe e a tia-avó esperavam.
– Por que é que o rei tem uma jaqueta tão curta? – perguntou
a menina com uma voz bem audível até no grande salão com o tecto alto pintado e tapeçarias grossas. – É suficientemente rico
para comprar um mais comprido, não é?
A mãe ficou calada, profundamente constrangida e bem ciente de que os atentos dignitários, oficiais militares e as senhoras da nobreza – já para não mencionar o camareiro da corte com a sua farta cabeleira e o seu bastão comprido, as damas de honor elegantemente vestidas e os fidalgos de câmara, os solenes criados com as suas librés de veludo –, bem como a avó, a duquesa, estavam à espera que ela respondesse à criança.
O rei quis saber o que a menina dissera e o que Frederico Guilherme da Prússia queria saber. Descobriu.
Alguém lhe repetiu as palavras da criança. Os cortesãos sustiveram a respiração, a mãe corou, uma afl ição aparente.
Então, para seu espanto, ele riu-se. De facto, o rei, que trazia uma cana com a qual batia nos soldados quando não marchavam tão rapidamente quanto ele queria ou quando se desviavam das ordens estritas e pormenorizadas, riu-se.
– A pequena é impertinente – ouviram-no dizer. Depois, afastou-se e a tensão na sala foi quebrada.
A criança, Sophia Augusta Fredericka de Anhalt-Zerbst, era precoce e activa, com um excesso de energia que a tornava precipitada e frequentemente obstinada. Tagarelava continuamente, estava cheia de perguntas, reparava em coisas e lembrava coisas que não provocavam qualquer reacção em crianças mais lentas. Aprendeu a ler quando era muito pequena e antes dos quatro anos já lia francês, pelo menos sofrivelmente, e escrevia nomes e datas. Sabia que não era bonita – e sentiu que essa era a maior preocupação da mãe – mas também sabia que era esperta e que a sua conversa animada, grande energia e boa-disposição podiam provocar um sorriso de prazer nas caras dos adultos à sua volta, tal como a pergunta impertinente fizera rir o rei Frederico Guilherme.
Foi uma princesa do principado insignificante mas ilustre de Anhalt-Zerbst, uma das cerca de trezentas entidades políticas independentes onde se falava o alemão. No ano do seu encontro com o rei da Prússia, 1733, estes trezentos principados dispersos, cidades livres, episcopados e ducados, estavam apenas ligados pelo laço político menos fi rme, uma união vaga e amplamente cerimonial sob a autoridade imensamente enfraquecida do Sacro Imperador Romano. Muito mais real do que a égide sombria do imperador foi o poder do rei da Prússia, que tinha sob o seu comando um dos exércitos maiores e mais disciplinados da Europa e cujas ambições territoriais ameaçavam a integridade dos Estados mais pequenos que faziam fronteira com o seu reino.
Anhalt-Zerbst era um destes Estados, algumas centenas de quilómetros quadrados de fl orestas de pinheiros, zonas de pastagem e de pântanos situadas entre o Eleitorado da Saxónia a sul, o Episcopado de Magdeburg a ocidente e a Prússia a norte. Desde o início do século XIII, Anhalt fora orgulhosamente independente, mas ao longo dos séculos a sua dinastia principesca expandira-se em tantas direcções que todos os seus príncipes empobreceram, com o minúsculo Estado a carecer de meios para aguentar uma casa governante populosa. Durante várias gerações, os príncipes Anhalt tinham evitado a destituição ao prestarem serviço no exército do rei da Prússia, e o pai de Sophie, o príncipe Christian August, seguira esta tradição, chefiando as tropas nas batalhas contra os franceses e os suecos,
dedicando a sua jovem natureza humana ao avanço das armas prussianas, embora não tivesse nem o talento nem a tendência para se distinguir como um líder de homens.
Já com trinta e sete anos, Christian August casara com uma princesa relativamente pobre mas de boas famílias, Johanna de Holstein-Gottorp, e levara-a para viver na pequena cidade de guarnição de Stettin, na fronteira pomeraniana, onde ele e o seu regimento estavam estacionados. Johanna tinha apenas dezasseis anos, era uma rapariga bonita, frívola, acostumada a ser mimada pela avó, a duquesa, e assustou-se com a escassa vida social de Stettin, onde os líderes da sociedade eram os oficiais militares da província sinistramente correctos e as mulheres dos comerciantes enfadonhos. Johanna e Christian August alugaram uma casa a um homem de negócios local, fixaram-se e pouco depois Johanna engravidou.
Pelo menos isto deu-lhe esperança. Se tivesse um filho, este podia herdar o principado de Anhalt-Zerbst, uma vez que o governante actual, um primo de Christian August, não tinha filhos e era muito provável que assim continuasse, e Ludwig, o irmão mais velho de Christian August, era solteiro. O nascimento de um filho libertaria Johanna de Stettin, e podia libertar o marido de ter de viver na servidão para com o rei da Prússia. Mas a criança foi uma rapariga – Sophia – e, ao dá-la à luz, Johanna sofreu terrivelmente. O trabalho de parto quase que a matou, e durante cinco meses mal se manteve viva, em sofrimento e ressentindo-se indubitavelmente da criança decepcionante cuja chegada a levara até às portas da morte. Sophie foi colocada ao cuidado de uma ama de leite de dezanove anos; depois, quando foi desmamada, foi entregue a uma preceptora, Madeleine Cardel, que fez o possível para refrear as energias super-activas da menina e tentou torná-la uma criança calma e dócil – pelo menos enquanto ela e a sua preceptora bastante aduladora se encontrassem no campo de visão dos pais.
Uma vez recuperada, Johanna voltou a engravidar pouco depois e desta vez estava determinada a ter um rapaz. Quando Sophie tinha dezoito meses, nasceu o irmão Wilhelm e imediatamente se tornou o centro do mundo de Johanna. Sophie foi lançada para a sombra e negligenciada, enquanto o novo bebé recebeu toda a atenção dos pais e ainda mais quando repararam que uma das suas pernas era fraca e atrofiada, impossibilitando-lhe um desenvolvimento normal. Foram consultados médicos, foram tentados remédios naturais; rezaram pelo rapaz, tomou banhos em fontes minerais e foi sujeito a todas as espécies de terapia. Mas o pequeno Wilhelm não se desenvolvia e Johanna sofreu uma outra decepção quando viu que o filho por que tanto ansiara era aleijado.
Christian August beneficiava agora da influência da família da mulher e viu-se nomeado governador de Stettin. Para além do acréscimo de honra e estatuto, isto significava maior vencimento (embora o general parcimonioso permanecesse avarento quanto ao dinheiro, para descontentamento da sua jovem mulher licenciosa) e aposentos mais dignos no castelo quadrangular de pedra cinzenta que dominava a cidade. Um andar inteiro numa ala do castelo, adjacente à capela com o seu alto campanário, foi cedido a Christian August e às pessoas que com ele viviam. Agora, quando a família se ajoelhava para as orações da manhã e da noite, ouvia o dobre do sino da capela e o som pesaroso servia para assombrar a infância da pequena Sophie.
Quando Sophie tinha quatro anos, Madeleine Cardel deixou o serviço de Christian August para se casar com um advogado e a sua irmã Babette ocupou o lugar de preceptora da princesa. Babette era um tesouro: perspicaz e com muito bom senso, nem mimou nem oprimiu Sophie, tratando-a com gentileza e paciência, tendo em conta a cultura da sua mente excepcional ao mesmo tempo que refreando a sua agitação. Babette era bem-disposta, lembrou Sophie quando acabou por escrever as suas memórias muitos anos mais tarde, um «modelo de virtude e sabedoria».*
O pai, um refugiado huguenote, foi um professor em Frankfurt e Babette tivera uma boa educação. Pode ou não ter tido algumas bases dos escritores clássicos gregos e latinos, mas com toda a certeza que conhecia os clássicos do drama francês e ensinou Sophie a recitar longos excertos de Molière e Racine. Numa casa onde a convencional piedade luterana e um sentido de dever bastante severo eram universais, Babette representava a racionalidade, a mordacidade e um toque do acerbo.
«Eu tinha um bom coração», escreveu Sophie de si própria quando criança, «eu tinha muito bom senso, chorava com muita facilidade, era extremamente instável.» Cheia de audácia física mas com um sentido de vergonha demasiado desenvolvido – o produto do ensinamento religioso excessivamente zeloso –, ela assustava-se facilmente e escondia-se muitas vezes para evitar o castigo imerecido que temia receber. A mãe apressava-se a censurá-la mas era lenta a reconhecer quando ela própria se enganava; consequentemente, Sophie apanhava mais do que a quota de palmadas que lhe era devida, o que feria o seu sentido de justiça e a deixava temerosa.
Amante de subir e descer as escadas, saltar por cima da mobília e de se precipitar de sala em sala, Sophie estava destinada a magoar-se. Certa vez, estava a brincar com umas tesouras e a ponta de uma das lâminas furou-lhe a pupila de um olho; felizmente, a sua visão escapou ilesa. Outra vez, estava a brincar no quarto da mãe, onde havia um armário cheio de brinquedos e bonecas. Esticou-se para o abrir – e, ao fazê-lo, puxou inadvertidamente o armário pesado, que caiu sobre si. No entanto, nessa altura, as portas tinham-se aberto e ela acabou por rastejar e sair incólume.
Quando Sophie tinha cinco anos, Johanna voltou a dar à luz, desta vez um outro filho, Frederick. Dois anos mais tarde, teve uma quarta criança, novamente um rapaz, mas que só viveu algumas semanas. Wilhelm, o herdeiro presuntivo aleijado dos domínios Anhalt-Zerbst, continuava a inquietar a mãe, que o enviou para as termas de Aix-la-Chapelle, Karlsbad e Tepliz, e que se preocupava demasiado com ele e com o outro filho, não prestando qualquer atenção à filha.
Os ossos fracos parecem ter atormentado a família, uma vez que, aos sete anos, até Sophie, normalmente robusta, ficou com a coluna vertebral gravemente desalinhada quando um ataque violento de tosse fez com que caísse sobre o seu lado esquerdo, e durante semanas foi vítima de dores violentas. A tosse persistiu, a par das dificuldades respiratórias, e quando, cerca de um mês depois, a criança foi autorizada a levantar-se, estava tão curvada que parecia deformada, com o ombro direito bem mais alto do que o esquerdo, com a coluna zuiguezagueante pelas costas abaixo com a forma da letra Z.
A primeira reacção de Johanna foi de desgosto. Já se sentia suficientemente mortificada por ter um filho aleijado: uma filha desfigurada era um contratempo embaraçoso de que não precisava. O estado de Sophie foi mantido em segredo; só Babette e alguns criados de confiança estavam a par. Ninguém sabia o que fazer; deslocações violentas não eram uma raridade no início do século XVIII – eram infligidas deliberadamente a prisioneiros torturados –, mas o único homem nas vizinhanças de Stettin que sabia fazê-las era também o carrasco local, e Johanna não queria que se soubesse que ela o contratara para tratar a filha.
Por fim, no maior secretismo, o carrasco entrou clandestinamente no castelo. Examinou Sophie e fez as suas recomendações: primeiro, que se arranjasse uma jovem virgem que espalhasse a sua saliva nas costas e no ombro da princesa todas as manhãs; segundo, que Sophie usasse um colete, um aparelho torturante semelhante a um espartilho rígido que a mantinha numa dada posição noite e dia e que apenas era autorizada a tirar para mudar a roupa interior.
Johanna, que invariavelmente exortava a filha a «padecer pacientemente» e se zangava quando Sophie gemia e se queixava, insistiu neste regime de saliva e espartilho; quando, passados muitos meses, o carrasco permitiu que lhe fosse retirado o colete rígido, o torso de Sophie voltara ao normal.
Mas não era suficiente exercitar os membros; também o seu intelecto tinha de ser cuidadosamente metido num colete-de-forças, para que não se desviasse para direcções incómodas. Babette Cardel notou que Sophie tinha um esprit gauche – um modo de pensar excêntrico e altamente individual. Tanto prezava muito a sua opinião como não, e «resistia a toda a resistência», tal como ela própria escreveu mais tarde, recordando como fora aos cinco e aos seis anos. Sophie tinha «uma mente perversa que apreendia tudo que lhe era dito com o sentido oposto», e numa idade em que se espera que todas as crianças, e em especial as meninas, sejam obedientes e submissas, a sua «mente perversa» presenteava os professores com um desafio.
Para além de Babette, que sabia como dominar a jovem princesa com sensatez e docilidade, Sophie tinha um professor alemão, um professor de dança francês, um professor de música e um mestre-escola calvinista que lhe ensinava caligrafia. Ela desprezou o mestre-escola como «um velho débil de espírito que fora um idiota na sua juventude», da mesma forma que o infeliz professor de música, «o pobre diabo Roellig», como lhe chamou quando o recordou mais tarde, tornando-se ridículo ao extasiar-se com os tons ribombantes de um baixo que ele levava sempre consigo quando lhe ia dar aulas, que «mugia como um touro». Sem ouvido para a música, Sophie tinha inveja de quem o tinha, mas não tinha qualquer respeito por Roellig ou por todos os outros convencidos provincianos inferiores que eram responsáveis por ela.
No entanto, por Herr Wagner, que lhe ensinou religião – a par de umas leves noções de história e geografia –, Sophie nutria uns sentimentos mais complicados. Herr Wagner era um pastor do exército que achava seu dever convencer a princesa alegre e inconstante da seriedade da vida, da fraqueza do mundo e da ameaça do inferno. Ofereceu-lhe uma enorme Bíblia em alemão com centenas de versículos sublinhados a vermelho e disse-lhe que os memorizasse. Sentava-se horas a fi o com o livro nos joelhos, repetindo para si própria frases sobre as pagas do pecado, a armadura poderosa de Deus e o coração como «enganador mais do que todas as coisas e desesperadamente cruel». Mensagens sobre graça e misericórdia misturavam-se na sua consciência de criança com visões de tormento e vingança divina – e, de facto, a vingança do Senhor pode bem ter-se confundido com a vingança de Herr Wagner, já que, quando Sophie se enganava numa palavra ou se esquecia de um versículo, a castigava severamente e transmitia uma desaprovação tal que fazia com que se sentisse como se tivesse falhado e fosse quase indigna.
A tragédia, o mal e o pecado eram os temas de Herr Wagner, e este fez o possível por inculcar em Sophie um sentido vivo de pessimismo em relação à vida terrena e um medo vivo do Julgamento Final, altura em que Deus concederia uma retribuição terrível àqueles que não alcançaram a sua misericórdia. De facto, Sophie levava muito a sério as mensagens do pastor Wagner e chorava amargamente e em privado devido às suas falhas. No entanto, quando se chegou à lógica da história e aos ensinamentos no Livro do Génesis sobre a criação do mundo, a sua curiosidade e poder de argumentação natural ultrapassaram a sua piedade.
Discutiu com o professor «acaloradamente e de uma forma muito opiniática» sobre como achava que fora injusto para Deus condenar todos aqueles que viveram antes do nascimento de Cristo. Perguntou: o que aconteceu àqueles fi lósofos inteligentes da antiguidade, Platão, Sócrates e Aristóteles, cuja sagacidade fora premiada ao longo de vários milénios? Deus não mostrou uma falha na justiça ao condená-los? Herr Wagner citou capítulo e versículo, mas Sophie continuou a defender Aristóteles e Platão. Por fim, o pastor foi ter com Babette e ordenou-lhe que desse uma boa sova em Sophie para que ela visse a verdade e obedecesse às pessoas mais velhas.
Babette explicou docilmente a Sophie que não era apropriado para uma criança expressar uma opinião contrária a uma autoridade mais velha como Herr Wagner e disse-lhe que acatasse o seu ponto de vista. Mas, em breve, professor e aluna voltaram a estar em desacordo. Desta vez, Sophie quis saber o que antecedeu a criação bíblica.
– O caos – anunciou Herr Wagner, com o que esperava ser peremptório. Mas o que era o caos, perguntou Sophie, e não ficaria satisfeita com o que ele lhe contou.
Exasperado e não podendo tolerar mais, e zangado, claro está, com Babette por recusar bater na princesa recalcitrante, Herr Wagner levantou as mãos e mandou chamar a preceptora, cuja intervenção restaurou a paz até que surgiu o novo tema de debate, sobre a palavra desconhecida «circuncisão». Claro está que Sophie queria saber o que significava, e claro está que Herr Wagner estava relutante em dizer-lho. Babette também disse à criança que parasse de perguntar, embora lhe tivesse sido muito difícil persuadir a criança persistente a contentar-se com a ignorância, e Sophie não percebeu que Babette achara a situação divertida.
Os exames de Herr Wagner eram quase tão terríveis quanto o Julgamento Final. «Fui horrivelmente, persecutoriamente questionada», recordou Sophie anos mais tarde. O pior de tudo foi o fardo de ter de saber de cor o que parecia ser um número infinito de versículos da Bíblia, bem como grandes excertos de poesia. Para a ajudar a concentrar-se no que estava a aprender, foram-lhe retirados aos sete anos de idade todos os brinquedos e bonecas. (Não sentiu muito a falta deles; preferia os jogos violentos activos próprios dos rapazes e nunca gostou de bonecas, divertindo-se em momentos de descanso a brincar com as mãos ou a dobrar o lenço da mão, obtendo formas fantasistas.) «Creio que não era humanamente possível reter tudo o que tinha de memorizar», lembrou muitos anos mais tarde. «Também acho que não vale o trabalho.»
A tensão nervosa era grande. Começou a desesperar. Quando o Outono chegou e os dias começaram a encurtar na longínqua cidade setentrional de Stettin, quando os sinos pesarosos da capela dobravam no crepúsculo, criou o hábito de se esconder por detrás das tapeçarias e de chorar como se o seu coração fosse partir-se. As lágrimas eram pelos seus pecados, pelos erros que cometeu quando recitou as lições e pelo amor de que sentia falta. Babette encontrou-a no seu esconderijo, conseguiu que ela ao menos admitisse o que estava a preocupá-la e foi ter com o pastor para se queixar. Disse-lhe que os seus métodos estavam a deixar Sophie excessivamente melancólica e assustada com o futuro e pediu-lhe que fosse menos severo. Nem Babette nem ninguém percebeu o problema mais sério que estava a perturbar Sophie: a consciência de que a mãe não a amava e a sua indignação perante o estropiado e mimado Wilhelm, que,
a seu ver, mereceu muitas vezes as palmadas que ela apanhou.
No seu íntimo, Sophie estava desesperada, mas exteriormente brilhava – quando na presença de outras pessoas. A sua jovialidade impetuosa, a sua tendência inata para «tagarelar audaciosa e continuamente» na companhia de adultos e a sua inteligência impressionante contribuíram para causar uma impressão forte naqueles fora do círculo familiar. Acostumou-se a ser elogiada pela sua inteligência. Quando a mãe levou Sophie a Brunswick para visitar a bisavó, a duquesa, foi persuadida a recitar as longas passagens dramáticas que memorizara e foi acarinhada e felicitada, pelo que chegou a ver-se de uma forma invulgar. «Ouvi dizer tantas vezes que era esperta, que agora já era crescida, que realmente acreditei.» O rei Frederico Guilherme, que se apercebera da precocidade de Sophie quando esta tinha quatro anos, continuou a encontrar-se com ela à medida que ia crescendo e seguiu o seu progresso, perguntando por ela sempre que estava em Stettin ou quando Christian August ia a Berlim.
Quando a princesa tinha oito anos, Johanna levou-a a Berlim pela primeira vez. Permaneceram durante vários meses e Sophie foi à corte, vestida como uma dama em miniatura com um vestido com uma grande cauda. A coluna já não ziguezagueava pelas costas abaixo, os ombros estavam nivelados e ela mantinha a sua pequena cabeça direita e altiva quando atravessava os salões do palácio real – que, na realidade, era menos imponente do que a casa da bisavó em Brunswick. O rei reavivou o seu relacionamento com ela e a rainha convidou-a para jantar consigo e com o príncipe herdeiro Frederico, então um jovem de vinte e cinco anos. Ambos ficaram encantados e impressionados com ela, e Frederico, que tal como Sophie possuía uma inteligência extraordinária e um espírito interrogador, ia lembrar-se bem dela.
O facto de a filha de oito anos estar a ofuscá-la foi custoso para Johanna, para quem, segundo o seu entendimento bastante limitado, as raparigas só tinham valor se fossem bonitas – ou, pelo menos, razoavelmente atraentes. Sophie, achava Johanna, era feia e, independentemente da sua inteligência, a sua fealdade não podia ser disfarçada. Johanna não transmitiu a sua opinião fora do círculo familiar, mas a filha, suficientemente sensível, estava bem ciente desse facto. Além disso, Sophie estava a crescer num ambiente social onde o valor da mulher era determinado pela sua beleza. Todos sabiam que as meninas feias cresciam para serem mulheres simples e as mulheres simples não arranjavam maridos. Definhavam na casa dos pais ou em conventos onde viviam numa luxúria de isolamento, não fazendo votos religiosos mas hospedadas com as freiras nos seus aposentos bem apetrechados. Todas as famílias, incluindo a de Sophie, tinham várias destas infelizes, mulheres supérfluas para as quais não se conseguia encontrar outro lugar. Sob o ponto de vista de Johanna, Sophie corria o risco de crescer e tornar-se uma delas.
Altamente inteligente, agradável, mas simples: tal era o veredicto a propósito de Sophie de Anhalt-Zerbst. A criança fez o que se esperava dela, observou o seu mundo com os seus enormes olhos brilhantes, fez um milhar de perguntas e esperou pela oportunidade de brilhar.


 

* Catarina, a Grande, escreveu pelo menos sete versões da sua autobiografia, começando a primeira delas quando tinha vinte e muitos anos. As várias versões diferem no pormenor e a autora não foi nem modesta nem imparcial, mas as mais de seiscentas páginas são um rico filão de conhecimento narrativo e uma ajuda incomparável para os biógrafos. 

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