Da Monarquia à República (1.º capítulo)

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1. INTRODUÇÃO: 1910, UM ANO PARA A HISTÓRIA

 

Os principais jornais portugueses do dia 1 de Janeiro de 1910 continham editoriais de balanço e projecção da vida portuguesa na transição do ano. Para O Século, a chegada de 1910 deveria significar um passo em frente no «progresso», na «luz» e na «felicidade» colectiva do país. Portugal integrava uma civilização europeia próspera, onde as «maravilhosas conquistas da ciência» interligavam cada vez mais nações, pessoas e ideias. A «solidariedade dos povos» marcava a época, através de um «intenso movimento liberal e democrático que em toda a parte se assinala». Assim inspirado, O Século propunha­‑se prosseguir, na opinião pública portuguesa, o combate pela vitória da «democracia» contra «um simbolismo grosseiro incompatibilizado com a nação». Esse simbolismo era a monarquia vigente, que se reproduzia em «governos sem prestígio e sem ideais» e que adiava as «providências e auxílios» necessários para levantar de novo as finanças, as colónias, a agricultura, a indústria ou o comércio. O ano seria, portanto, de luta acesa.[1] O mesmo anunciava o jornal O Mundo, o porta­‑voz do radicalismo republicano: num ensaio filosófico sobre a dimensão do tempo – ganho ou perdido – na evolução dos povos, apelava­‑se a que o país, «compreendendo afinal o valor do tempo», recuperasse «um século perdido» e entrasse resolutamente «no ambiente de pensamento e de acção criado no mundo contemporâneo pela derrocada dos deuses e a aposentação da providência».[2] Em contraste, o periódico monárquico Diário Ilustrado narrava a recepção de ano novo no Paço, «brilhantissimamente concorrida», e dela retirava a lição de «quanto o povo, que somos todos nós, ama e respeita as instituições monárquicas e as pessoas que afortunadamente as simbolizam».[3] A meio caminho no espectro dos jornais partidários, o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias não faziam política, limitando­‑se a desejar que 1910 fosse apenas melhor do que os seus antecessores, dado que o ano de 1908 fora de «trágica recordação» (o regicídio), e o de 1909 também de má memória, com o terramoto no Ribatejo, em Abril, e as chuvas calamitosas no Douro, durante todo o Outono.[4]
Um ano volvido, no primeiro dia de Janeiro de 1911, a imprensa apartidária continuava circunspecta, desejando apenas que a «paz» e a «grandeza» chegassem a «um povo doente» pela «treva da desesperação» e que há muito vinha tentando várias «convalescenças».[5] E enquanto os jornais monárquicos fechavam portas ou se escondiam, O Mundo destacava o grande facto de 1910, que ele também ajudara a produzir: «Entramos hoje no ano de 1911. Em igual dia do ano de 1910, estava certamente longe do espírito do país a crença de que daí a doze meses já a República se encontraria implantada em Portugal, cercada do respeito dos cidadãos, considerada benevolamente pelo estrangeiro e tendo já produzido monumental obra reformadora.» A transição de regime «era do livro dos destinos. Ignorava­‑se o dia, ignorava­‑se a hora da redenção, mas não se desconhecia a iminência do acontecimento.»[6] Já para O Século, se 1910 fora «a revolução», 1911 seria «a afirmação fecundante da vitória», sob o lema e novo desígnio nacional de «vamos para o trabalho […] e para a regeneração portuguesa».[7]
De um ano para o outro, de facto, e sobretudo nos dias e semanas que se seguiram à vitória republicana em Lisboa, a 5 de Outubro de 1910, muita coisa tinha começado a mudar em Portugal. 1910 foi um dos mais importantes anos do século xx português, constituindo um ponto de viragem que só tem paralelo nos anos de 1926 e de 1974. Alargando a perspectiva a toda a história de Portugal, é mesmo uma das datas com presença obrigatória na mais sumária de todas as cronologias – a par, talvez, de 1143, de 1385, de 1640 ou de 1820. Isto porque o mais importante acontecimento do ano foi também um dos mais importantes acontecimentos de toda a longa história de Portugal. O triunfo republicano pôs fim a 750 anos de regime monárquico, ao cabo de quatro dinastias e 34 monarcas, e ao fazê­‑lo inaugurou o século xx político­‑institucional português. Em domínios como a economia, a sociedade, a cultura ou as artes, os ritmos não são necessariamente coincidentes com os da política: nos dois primeiros casos, por exemplo, o século xx português remonta à explosão da crise no terrível biénio de 1890­‑1892; nos dois últimos casos, a transição do século tem de avançar para outros terríveis anos, os da I Guerra e do pós­‑Guerra, quando a geração literária e artística do Orpheu estilhaçou as convenções oitocentistas e inaugurou a expressão da vida moderna em Portugal. Na política e nas instituições, 1910 foi o principal ponto de viragem para o futuro, iniciando, conforme as leituras, um «curto» século xx, que se encerrou em 1974, com o 25 de Abril, ou em 1986, com o reencontro com a Europa, ou que ainda não terminou verdadeiramente, já entrado o século XXI.
As transformações ocorridas em 1910 colocaram Portugal sob intensa observação estrangeira. Ao desterrar D. Manuel II para o exílio, o país tornou­‑se a segunda república moderna no mapa da Europa a seguir à francesa, implantada em 1871, e descontando o caso suíço, cuja estrutura cantonal remontava à Idade Média, e o único país europeu governado pela esquerda revolucionária antes da ascensão dos bolcheviques ao poder na Rússia, em 1917.[8] Portugal deu assim um ar de novidade numa Europa que não via revoluções desde a Comuna de Paris, em 1871, antecipando a moda da queda dos regimes monárquicos oitocentistas que chegaria sobretudo como consequência das transformações da I Guerra Mundial.[9] Em 1918, desapareceram os quatro maiores tronos do século xix europeu – o Império Austro­‑Húngaro, o II Reich alemão, o Império Turco­‑Otomano e a Rússia czarista. É tentador imaginar um cenário contra­‑factual, no qual D. Carlos teria escapado vivo do atentado no Terreiro do Paço, em Fevereiro de 1908, ou D. Manuel teria tido um exército monárquico disposto a bater­‑se por ele em Outubro de 1910: um ou outro teriam talvez reinado pelo menos até ao final da I Guerra Mundial e, supondo que o liberalismo português colapsasse nos anos 20’, pela vaga antiliberal que se espalhou na Europa nesse período, Portugal teria porventura transitado directamente do constitucionalismo monárquico para a ditadura militar e/ou civil.
Sendo um ponto de partida para novos tempos, a dinâmica do ano de 1910 – de ocaso agonizante da monarquia e de triunfo acidentado da república – não se percebe sem um mais largo quadro, que trate esta data como um ponto de chegada. Depois do 5 de Outubro, o escritor monárquico Carlos Malheiro Dias lembrou que a revolução não surgira em «escassos meses», recordando: «A questão dos tabacos [1904] inaugurou­‑a. A cisão do partido progressista [1905] animou­‑a. A queda do ministério Hintze [1906] agravou­‑a. A ditadura do conselheiro João Franco [1907] precipitou­‑a. O regicídio [1908] é a baliza trágica de um naufrágio. D. Manuel é apenas um náufrago que se sustenta ao lume d’água três anos [1908, 1909 e 1910].»[10] É isto o mínimo para compreender e contextualizar 1910. Mas a força do impasse que matou a Monarquia constitucional e a força da promessa que abriu as portas à República mergulham mais fundo no tempo, obrigando a um olhar conjuntural que remonte a 1890 e a uma visão de conjunto estrutural que tem de recordar alguma coisa sobre todo o século xix português.
Só recordando o oitocentismo português e avaliando o impacto fracturante da crise do fim do século em Portugal é possível compreender como é que a Monarquia se deixou vulnerabilizar até ao estado de decomposição e ao beco sem saída em que se encontrava em 1910. O que se passou durante os três dias de Outubro que derrubaram o trono pertence tanto à história do republicanismo, da sua evolução e do seu assalto final ao poder, quanto à história da política monárquica em Portugal. Na verdade, e à semelhança do ocorrido em 1926 ou em 1974, 1910 é a prova de que os regimes contemporâneos portugueses não caem perante a solidez da oposição: desfazem­‑se, por pura incapacidade de auto­‑regeneração, abrindo um vazio que os seus adversários depois preenchem. 

 

 

[1] O Século, 1.Jan.1910.

[2] O Mundo, 1.Jan.1910.

[3] Diário Ilustrado, 1.Jan.1910.

[4] Diário de Notícias, 1.Jan.1910, e Jornal de Notícias, 1.Jan.1910.

[5] Jornal de Notícias, 1.Jan.1911.

[6] O Mundo, 1.Jan.1911.

[7] O Século, 1.Jan.1911.

[8] Ramos, 2009, p. 577.

[9] Serra, 2009, p. 43.

[10] Dias, 1912a, p. 16.


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