Crónica de uma Ressurreição - 1.º capítulo

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Já está despachadinha

…– Dispa­‑se da cintura para cima, vista esta bata e aguarde que já a vêm chamar.
… Dispa­‑se que já a vêm chamar.
… Dispa­‑se da cintura para cima, vista esta bata…
… Da cintura para cima… dispa­‑se… a vimos chamar.
Já sei! É para me despir da cintura para cima.

E depois ali estamos todas nós, vestidas da cintura para baixo, de bata branca da cintura para cima. Sou a mais nova da sala. As outras senhoras estão todas na casa dos 50. Eu farei 40 na próxima semana. Até lá ainda chegarei com certeza. Terão vindo por rotina apenas, ou, como eu, terão vindo para espreitar uma coisa que já sabem estar lá dentro?
Ninguém se fala. Tantas mulheres assustadas e nenhuma procura um consolo noutra, um desabafo ou uma partilha. Talvez seja o medo de ouvir uma história pior do que a sua. Talvez porque o medo da morte seja um sentimento solitário. Uma intimidade. Um acto de isolamento. No fundo, morrer é ficar só. E em silêncio.
Mas ainda não era altura. Havia ainda vários preliminares. Não digo eróticos. Antes fossem. Digo os procedimentos médicos, os exames, as biópsias as perguntas, os relatórios, as dúvidas, os diagnósticos, com seus avanços e recuos, as probabilidades, um sem­‑fim de afazeres qual rally paper em que a cada posto de informação recebemos a pista para encontrar o novo posto com a nova pista a decifrar.
–Va mos?
– Sim.
– Pode vir por aqui e abrir a sua bata?
– Sim.
– Agora encosta­‑se aqui por favor?
– Sim.
E começa. Aquilo parece a boca do Pac­‑Man cor­‑de­‑rosa. Tudo aquilo é muito difícil, mas o pormenor de fazerem os «apliques» das máquinas em rosa­‑bebé é sórdido e perfeitamente dispensável; de um certo requinte de malvadez, diria eu. Quem teve essa ideia só pode ser real e profundamente estúpido. Ou mal­‑intencionado mesmo.
Dão­‑se coisas cor­‑de­‑rosa às meninas desde que nascem. Alguma mente brilhante achou que aquela maquineta de espreitar coisas más dentro do peito das senhoras devia ser cor­‑de­‑rosa como os quartos de bebé das meninas, os seus babygrows, as suas fraldinhas de pano, a colcha do berço, a cortina do quarto, a primeira bicicleta, a mochila e o estojo da escola, o primeiro verniz das unhas, ou o bouquet de noiva, o enxoval das nossas filhinhas e, claro, as máquinas das mamografias ao nosso peito. Tão óbvio quanto isso. Se fossem máquinas para realizar testiculografias seriam naturalmente azul­‑bebé.  
Empurram o nosso seio para dentro de duas bandejas acrílicas transparentes, puxam­‑no, ajeitam­‑no e repuxam­‑no mais ainda para se certificarem de que ele está todo bem dentro da boca do Pac­‑Man cor­‑de­‑rosa. E depois vem o torniquete. Sim, não basta estar despida da cintura para cima na sala gelada das catacumbas escuras em que estas máquinas prosperam, o puxa e repuxa para dentro da boca do Pac­‑Man rosa­‑bebé e o «e agora não se mexa por favor». Ainda é preciso apertar.
E a jovem senhora, que por alguma razão impenetrável andou anos a estudar para fazer disto um modo de vida, carrega no botão para apertar o torniquete electrónico. Eu ainda tenho a imagem do torniquete mecânico das aulas de trabalhos manuais do quinto ano. O torniquete sempre me fascinou conceptualmente pela simplicidade da inteligência que subjaz ao mecanismo. Girar uma tira de ferro sem nenhum esforço e pela conjunção de mecanismos de alavanca apertar uma coisa qualquer com uma força n vezes superior à força humana isolada de quem manipula o mecanismo. Ali estava a minha maminha sob a força do torniquete e entre as duas bandejas acrílicas servida ao Pac­‑Man rosa­‑bebé.
Algum tempo depois de o torniquete me estar a doer, grito. Ela pára.
Parva que fui: devia ter gritado antes de me doer – penso. Bem, talvez não… era preciso tirar uma boa foto para ver tudo o que estava ali.
– Agora não se mexa.
– Não, não me mexo. – Aguento a dor
– Pronto! Já está despachadinha.
– Já estou despachadinha. Esta frase acordou­‑me à violência do que se estava a passar.
Foi ontem à noite: pousei a mão naquele seio enquanto, deitada, conversava animadamente, gesticulando. Numa pausa do discurso desço a mão, poisando­‑a. Eis que sinto algo.
– Que é isto?! – Penso em voz alta, para dentro de mim.
– Uma costura da camisa de noite? – penso.
Enfio a mão por debaixo dos lençóis, por debaixo da camisa de noite rendilhada sexy e coleante, de algodão azul­‑escuro; deslizo os dedos à procura, na expectativa ardente de que não vá sentir nada, nenhum volume duro e estranho que nunca lá estivera antes, como se batesse à porta de alguém desejando que a casa estivesse vazia, ou como se telefonasse a alguém desejando que não atendesse mas cumprindo o frete de ter feito a chamada deixando prova inequívoca disso mesmo e aliviando assim qualquer remorso.
Mas não. Alguém abriu a porta.
Alguém atendeu o telefone.
Naquele instante a Terra parou de girar, o Sol suspendeu as suas explosões, as estrelas estancaram no Céu, os cães do bairro não ladraram, as cigarras interromperam a sua corte sexual estreónica, a emissão televisiva congelou, e nem os corações da população mundial bombearam sangue durante escassos momentos. Estava ali uma coisa.
Já está despachadinha. Esta frase repôs o mundo a funcionar na minha cabeça. Até ali a estupefacção criogenizara­‑me o pensamento e a emoção. Já está despachadinha. Acordei!
Mas então, eu devo mesmo ter aquilo! Eu?! Isso não existe nas mulheres da minha família!… E eu, eu sou o cúmulo do optimismo, da atitude positiva: corro, danço, salto, trabalho tanto, até monto a cavalo!…Eu?! Morrer assim?!
– Boa tarde – digo, em rios de lágrimas – dê­‑me uma caixa de Valdispert por favor –.
– De 50 ou de 125 gramas?
– 125 – piscando os olhos para tentar ver através da água dos olhos.
O amigo indesejado abriu a porta, atendeu o telefone, e agora eu tinha ali 300 gramas da minha nova amiga Raiz de Valeriana para me ajudar a conversar com ele. Foi ela que me conduziu o carro de volta à casa onde vivia.

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