Apresentação de João Carlos Espada de «As palavras da Palavra»
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Apresentação do livro
As palavras da Palavra: Dicas sobre as parábolas de Jesus
De Padre Gonçalo Portocarrero de Almada e Zita Seabra,
Com Notas Exegéticas de P. Geraldo Morujão e Desenhos de Inês Moura Paes
Lisboa, Teatro de São Carlos, 12.13. 2013
O livro que me cabe hoje aqui apresentar é um livro cheio de lições importantes e duradouras.
Uma das que apreendi logo que comecei a ler este livro foi que, antes de aceitar apresentar um livro, devemos lê-lo. Eu não tinha lido este livro antes de aceitar o amável convite da minha querida amiga Zita Seabra para o apresentar. E quando comecei a lê-lo, comecei a perceber que tinha sido um grande disparate da minha parte ter aceitado vir aqui apresentá-lo. Eu simplesmente não estou preparado para dizer nada que acrescente alguma coisa ao excelente -- excelente e surpreendente -- livro que hoje aqui nos traz.
O disparate foi meu, sem dúvida, embora continue altamente intrigado sobre as razoes por que terei sido escolhido para o apresentar. Mas, repito, o disparate foi meu, por ter aceitado. Não terá sido, todavia, um disparate em vão. Embora eu não tenha grande coisa para vos dizer sobre este livro, a verdade é que aprendi já muito -- e fui levado a reflectir muito e a interrogar-me muito -- com este livro.
"As palavras da Palavra: Dicas sobre as parábolas de Jesus" é, como o nome indica, um livro sobre as parábolas do Novo Testamento. São 29 capítulos sobre 29 parábolas. Cada capítulo inicia-se com um desenho de Inês Moura Paes e a reprodução de uma parábola, seguida de uma breve nota exegética da autoria do Senhor Padre Geraldo Morujão, após o que se inicia uma intensa conversação entre Zita Seabra -- que faz perguntas, mas também comenta e discute as respostas e reflexões do Senhor Padre Gonçalo Portocarrero de Almada. São 445 páginas de intensa conversação sobre e a partir das parábolas de Jesus, mas que nos levam a uma viagem intelectual sobre os mais diversos problemas da vida espiritual, moral, cultural, política e económica -- do presente, do passado e também de certa maneira do futuro.
A citação inicial de Bento XVI exprime de certa forma o intrigante apelo deste livro. Bento XVI começa por dizer que "as parábolas constituem, sem dúvida o centro da pregação de Jesus". E acrescenta que "acontece connosco o mesmo que se verificava com os contemporâneos de Jesus e com os seus discípulos: temos de perguntar-Lhe sempre de novo o que é que nos quer dizer com cada uma delas (Mc 4, 10)".
É de facto esta interrogação permanente que acontece ao longo deste livro e que nos interpela, levando-nos a uma nova interrogação. Zita Seabra interpreta este desafio interrogativo das parábolas como "um espaço de liberdade, de criatividade e de poesia ... Pequenas histórias, frequentemente provocatórias e, muitas vezes, inverosímeis, mas cheias de surpreendentes ensinamentos. Não há fundamentalismo possível na interpretação das parábolas -- conclui ela -- porque não são passíveis de uma única interpretação por biblistas ou teólogos."
Por seu turno, o senhor Padre Gonçalo Portocarrero de Almada sublinha que "nenhuma interpretação esgota nenhuma parábola". Simultaneamente, recorda o papel central das parábolas na transmissão de um ensinamento, ensinamento que se torna mais real através da parábola:
" Por exemplo, se não houvesse a parábola do Filho Pródigo, seria muito difícil perceber o que é a misericórdia de Deus. Seria impossível entender o perdão de Deus, o que significa a conversão, e , até, compreender o que é a filiação divina, ou seja, o que quer dizer sermos filhos de Deus. Se Nosso Senhor dissesse que o seu amor por nós é misericordioso, nós com certeza que acreditaríamos e não teríamos qualquer dúvida. Mas, poderíamos questionar: o que é que se quer dizer quando se afirma que Deus "é misericordioso"? Se Deus nos dissesse que está disposto a acolher o pecador, nós acreditaríamos. Mas como é que Ele recebe o pecador? Até que ponto é que Ele esquece? Até que ponto é que ultrapassa o agravo, ou a ofensa, de que foi objecto? A parábola do Filho Pródigo é, de facto, mais rica do que qualquer explicação teórica acerca da misericórdia divina ou o perdão de Deus" (p.15).
O amor de Deus e a misericórdia divina estão de facto no centro da mensagem cristã, que reaparece ao longo de inúmeras parábolas. Mas é um amor e é uma misericórdia que são simultaneamente exigentes -- e é talvez esse um dos aspectos mais interpelantes da mensagem cristã. Recusa a intransigência dos fundamentalismos e, ao mesmo tempo, recusa o laxismo ou a indiferença do chamado " deixa andar" tão do agrado das novas terapias da chamada auto-estima -- que são igualmente discutidas neste livro.
O senhor Padre Portocarrero de Almada exprime eloquentemente esta dupla mensagem do amor cristão quando explica que
"A Igreja é mãe. E, as mães são, ao mesmo tempo, carinhosas e compreensivas, mas também exigentes. A Igreja é exigente e requer um propósito sério de contrição. Mas, ao mesmo tempo, se por fraqueza, se por veleidade, voltarmos a cair, a Igreja está sempre pronta para nos poder acolher, para, em nome de Deus, nos perdoar e animar" (p. 160).
Julgo que nesta tensão entre misericórdia e exigência se encontra uma das chaves da mensagem cristã e uma das chaves do seu surpreendente sucesso pacífico ao longo dos últimos dois mil anos -- do qual resultou a nossa civilização cristã ocidental. Zita Seabra lembra a este propósito um texto muito expressivo sobre o que é ser cristão, a Carta a Diogneto, do século II, de autor desconhecido. Diz essa carta:
"(Os cristãos) habitam pátrias próprias, mas como pregrinos; participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira. Casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os neonatos. Servem-se da mesma mesa, mas não do mesmo leito. Encontram-se na carne, mas não vivem segundo a carne. Moram na terra e são regidos pelo céu. Obedecem às leis estabelecidas e superam as leis com as próprias vidas. Amam todos e por todos são perseguidos" (p. 26).
Terá sido esta atitude tão exigente e ao mesmo tempo tão tolerante que permitiu à inicial minoria cristã civilizar o Ocidente -- e, por essa via, tornar o Ocidente simultaneamente tão atractivo e tão preocupante para outras culturas e civilizações. Como recorda o senhor Padre Portocarrero de Almada,
"O cristianismo teve um papel muito importante na moralização dos costumes sociais. Até a eutanásia era praticada, na Grécia, onde as crianças recém-nascidas eram postas ao relento na primeira noite, para ver se aguentavam: se vingassem, então valia a pena criá-las, mas se morressem, enterravam-se. (...) quando o cristianismo aparece no Império Romano praticavam-se bastantes brutalidades. Basta pensarmos que se admitia a escravatura, o circo, em que se sacrificavam vidas humanas, etc (...) Quando os europeus chegaram à América, dita Latina ou América do Sul, faziam-se lá sacrifícios humanos, de rapazes e de raparigas que eram oferecidos aos deuses. Isto acontecia numa civilização que era tida como já desenvolvida, mas que era capaz de fazer uma coisa tão selvagem, tão brutal, tão cruel que, obviamente, na Europa há muito que já não acontecia" (p. 23).
Este tema da centralidade da vida humana, da pessoa humana, conduz-me a uma nota final, com que gostaria de concluir estas breves palavras. Como sabem, tenho ocupado, ao longo dos último 3 anos, a cátedra Geremek em Civilização Europeia no Colégio da Europa, em Varsóvia. No centro desta cátedra está o estudo da Civilização Europeia em geral e, em particular, no século XX, em homenagem ao Professor polaco Bronislaw Geremek, que era ele próprio um estudioso da Europa medieval, tendo sido também um decisivo protagonista do movimento Solidariedade e um dos primeiros conselheiros do célebre Lech Walesa. Geremek era judeu e escapou por um triz do gueto de Varsóvia. Mas ele considerava que o cristianismo constitui a matriz fundamental da civilização europeia e ocidental e que no centro dessa civilização está o respeito pela dignidade da pessoa humana.
Os polacos são particularmente sensíveis a esta proposta de Geremek porque eles sentiram tragicamente ao longo do século XX a negação desta mensagem cristã fundamental. Essa negação foi perpetuada, diríamos apropriadamente executada, por duas ideologias pagãs -- o nacional-socialismo e o comunismo -- que espalharam a morte e a perseguição pela Polónia duplamente invadida.
A política desses fundamentalismos rivais assentava na recusa frontal da cultura de equilíbrio inerente ao cristianismo. Esta noção de equilíbrio era associada pelos nazismo e pelo comunismo àquilo que designavam por decadência burguesa e capitalista, por eles sobretudo atribuída ao chamado capitalismo judaico-anglo-saxónico. Esta misteriosa entidade era então acusada de contaminar os elevados ideais -- de uma cultura trágica e heróica, no caso do nazismo, e de uma cultura colectivista e igualitária, no caso do comunismo -- com o vírus personalista da ambição melhorista individual.
Associada a esta revolta fundamentalista do nazismo e do comunismo estava uma comum ideologia cientista e um profundo desprezo pelos mandamentos de compaixão e misericórdia da mundividência cristã. Esta era acusada também de cumplicidade com o mundo decadente e burguês, um mundo que pertenceria a um passado conservador e contrário à nova era da técnica científica.
Este cientismo pagão revestia-se de diferentes modalidades. No caso do nazismo, assentava basicamente no culto da eugenia racista e no desprezo brutal por todos os comportamentos que parecessem débeis, frágeis ou desviantes. No caso do comunismo, tratava-se da chamada ciência da história, uma superstição teleológica que assegurava aos iniciados a chave do desenvolvimento futuro das sociedades -- e, com ela, a legitimidade "científica" para literalmente varrerem tudo o que se lhes opusesse.
Em nome destes fanatismos rivais, nazismo e comunismo destruíram a democracia na Europa central na década de 1930. Sabemos hoje que os nazis mataram deliberadamente 11 milhões de não-combatentes, dos quais cerca de 5,4 milhões de judeus -- 2,6 milhões a tiro, 2,8 milhões em câmaras de gás. Para os soviéticos, no período de Staline, os números de não-combatentes deliberadamente assassinados ascendem de seis a nove milhões.
A brutalidade destes números evidencia o premonitório alerta lançado no século XIX pelo grande historiador britânico, Lord Macaulay, quando anteviu as consequências de uma eventual erosão do horizonte judaico-cristão de uma civilização dominada exclusivamente pela técnica: "a aterradora ameaça de uma civilização técnica destituída de misericórdia".
Meus Caros Amigos,
Não quero banalizar o mal do comunismo e do nazismo e, por isso, não devo estabelecer comparações ligeiras com a atmosfera cultural em que vivemos actualmente. Mas o excepcionalismo do mal comunista e nacional-socialista deve recordar-nos as consequências de uma civilização técnica sem misericórdia, como dizia Lord Macaulay.
Num tempo de triunfo da técnica comunicacional, de satisfação instantânea, de culto da vulgaridade e das celebridades mediáticas, de culto do facilitismo e do sucesso fácil, talvez seja boa altura de pararmos para reflectir sobre as mensagens intrigantes que inspiraram a nossa civilização europeia e ocidental. Talvez seja altura de pararmos para parabolar com estas 445 desafiantes páginas que nos propuseram o senhor Padre Gonçalo Portocarrero de Almada e Zita Seabra.
Muito obrigado.
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