Humor de Mãe (1.º capítulo)

Posted by Hugo Neves on

Final do dia 

 

A parte má de se ter muitos filhos é o final do dia. É um pesadelo. O final de um dia numa casa cheia de crianças é um sítio não aconselhável a pessoas sensíveis, idosos ou utentes com problemas cardíacos. 

Alguém com este perfil não deve, em circunstância alguma, aproximar­‑se num qualquer final de dia de uma casa onde vivam mais de três crianças. E se souberem que ali vivem seis, aconselho a afastarem­‑se pelo menos dois quilómetros. É que o ambiente que ali se vive é quase tão infernal como aquele dia no Pingo Doce das promoções de 50 por cento. A agitação e a gritaria são mais ou menos as mesmas. 

Toda a gente me pergunta como é que eu faço para despachar seis crianças de manhã (despachar é mesmo o termo); para as pessoas em geral a grande incógnita sobre rotina da minha vida prende­‑se com as manhãs. Não, meus senhores, as manhãs são um passeio à beira mar: estamos todos meio a dormir e a única pessoa que grita sou eu. A altura verdadeiramente crítica é o final do dia. As crianças não se dão bem com esta fase do dia. Passam­‑se. Desde bebés que são assim. Em bebés choram, têm dores de barriga e agitam­‑se mais do que o resto do dia sem razão aparente ou mais rebuscada. É assim porque sim. E quando crescem ficam
desaustinados. 

Enquanto nós, pessoas normais, estamos arrasados às sete da tarde e suspiramos por paz, por silêncio, por descanso e o nosso cérebro entra em ponto morto, as crianças não. No final do dia as pilhas deles aparecem milagrosamente recarregadas. A escola, que devia dar cabo deles, não tem essa capacidade. Ao final do dia é quando se dão todas as discussões, é quando se verifica a capacidade vocal de cada um, é quando eles se lembram de contar imensas histórias, de dar milhares de recados, de se queixarem da vida e até de expressarem a sua incredibilidade por alguns temas metafísicos, religiosos ou científicos. Tudo isto ao mesmo tempo que estudam, tomam banho, arrumam as roupas e os livros da escola, brincam, veem televisão ou estão no computador. Com dois ou três, a coisa faz­‑se bem. Mais do que isso, é um hospício. Por isso é que eu tenho a certeza que 96 por cento dos castigos dados às crianças em todo o mundo são referentes a atos, a pensamentos e a omissões de cariz asneirento verificados nesta altura do dia.

O grande desafio de um adulto que esteja a viver esta delicada circunstância é manter a concentração. As crianças falam todas ao mesmo tempo, ou seja, elas não acham que tenham de estar caladas só porque alguém já está a falar com o mesmo interlocutor. Por isso, no caso do estudo, elas têm dúvidas em simultâneo. E dúvidas absolutamente distintas porque as idades variam. Temos, portanto, de manter a concentração quando somos forçados a responder a questões sobre contas de somar, expressões numéricas com números negativos, a crise do século XIV, como se faz o i e sobre o esqueleto. Ao mesmo tempo que vamos apanhando do chão a chucha da criança mais nova que vai refilando porque quer colo. Passando este desafio fica a faltar apenas os banhos, a arrumação, o jantar e a gestão das discussões, das brincadeiras e dos gritos. 

É por causa dos finais do dia que a minha avozinha alegava que onde as crianças estão bem é nas fotografias: onde não há perigo de acordarem. A boa notícia é que, eventualmente, todas crescem. E tal como o socialismo se vai esbatendo com a idade, também os finais do dias vão pacificando. Até ao conservadorismo final, em que passam a amantes da paz, da ordem e da serenidade. 


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