Confissão (Prefácio de José Milhazes)

Posted by Afonso Reis Cabral on

 A Confissão de Tolstoi é talvez a obra mais autobiográfica deste autor clássico da literatura russa, onde faz um balanço da sua vida interior passada, tentando exprimir um novo sentido e significado para a vida depois de intensas buscas emocionais.

Lev Tolstoi traça um retrato das suas buscas espirituais: desde o niilismo juvenil e da descrença até à crise existencial da idade adulta. O escritor alcançara praticamente tudo na vida: saúde, reconhecimento universal, riqueza e uma família ideal, mas eis que surge o dragão chamado morte, que tudo devora e atira por terra todos os anseios humanos. Tolstoi conta que precisou de tirar os cordões do quarto «para não ter a tentação de se livrar da vida de forma demasiadamente fácil».

Terá a vida um sentido que não seja destruído pela inevitabilidade da morte? Terá sentido servir a arte, o progresso da humanidade e os homens sem a compreensão do sentido geral da vida? Não estarão despidos de sentido o desenvolvimento social, o consumismo e a acumulação de bens materiais numa existência humana tão breve? Tolstoi procurou respostas a estas perguntas na ciência, na filosofia e na sabedoria oriental, mas não as encontrou porque o sentido da vida não se explica com a razão. Por isso, o escritor e pensador russo vai à fé popular simples, fazendo dela o início da sua cura espiritual.

Nos anos de 1870, Tolstoi atravessa uma profunda crise espiritual. O mundo interior do escritor reflecte-se nos sentimentos de um personagem do romance Anna Karenina, alterego de Tolstoi, Konstantin Levin:  

«Involuntariamente, inconscientemente para si, ele agora procurava em todo o livro, em toda a conversa, em todo o homem uma relação com essas questões e a sua solução... Estas ideias atormentavam-no e torturavam, ora de forma mais fraca, ora mais forte, mas nunca o deixavam. Ele lia e pensava, e, quanto mais lia e pensava, mais longe se via do objectivo por ele perseguido.»

O clássico russo procura resposta às perguntas que o atormentam nas conversas com monges e sacerdotes ortodoxos russos, visitando conhecidos mosteiros, como o de Optina pustyn. Além disso, dedica-se ao estudo do hebraico e grego antigos para melhor compreender o cristianismo primitivo, interessa-se pela vida de seitas cismáticas ortodoxas, e aprofunda os seus conhecimentos no campo da filosofia e das ciências exactas.

Ao mesmo tempo, vai mudando radicalmente o seu modo de vida: renuncia ao conforto e às riquezas, aos direitos de autor sobre as suas obras, dedica-se ao trabalho físico, veste roupas de camponês simples, torna-se vegetariano. Resumindo, Tolstoi dá início a um terceiro período da sua actividade literária, cujo traço distintivo principal é a negação de todas as formas de Estado, da vida social e religiosa.

Só depois de visitar os conventos Kievo-Petcherky e Troitza-Serguieva, os dois principais centros da ortodoxia russa, é que decide expor a sua nova concepção do mundo, na Confissão.

Esta obra foi de tal forma mal recebida pela Igreja Ortodoxa Russa que a censura eclesiástica proibiu a sua publicação em 1882 na revista Russkaya mysl (Pensamento russo). Assim, foi editada pela primeira vez em francês, em Genebra, no ano de 1884, e só foi publicada na Rússia em 1906.

Konstatin Leontiev, conhecido filósofo ortodoxo russo, conta uma conversa que teve com Tolstoi: «É pena, Lev Nikolaevitch, que eu seja pouco fanático. Eu deveria escrever para Petersburgo, onde tenho contactos, para que o desterrassem para Tomsk e impedissem a condessa e as suas filhas de visitá-lo, e para que lhe enviassem pouco dinheiro. Pois você é claramente pernicioso.» O escritor exclamou: «Querido Konstanti Nikolaevitch! Escreva, por amor de Deus, para que me desterrem. Esse é o meu sonho. Faço tudo para me comprometer aos olhos do governo, mas perdoam-me tudo. Peço-lhe, escreva!»

O governo não ousava fazer tal coisa, pois Lev Tolstoi era já uma referência da literatura mundial e o seu desterro em nada contribuiria para a então abalada fama do czarismo russo na Europa. Porém, a Igreja Ortodoxa Russa, que, naquela altura, era dirigida por um ministério chamado Santo Sínodo, não lhe perdoou e excomungou-o em Fevereiro de 1901.

«O facto de eu ter renunciado à igreja chamada ortodoxa é completamente justo. Mas eu renunciei a ela não porque me tenha revoltado contra Deus, mas, pelo contrário, apenas porque só o quero servir com todas as forças da minha alma», respondeu o pensador.

Lev Tolstoi nasceu no seio de uma velha família nobre russa em 9 de Setembro de 1828. Iniciou a sua longa carreira literária em 1847, quando começou a escrever o seu Diário na cama de um hospital de Kazan. Depois de abandonar a universidade dessa cidade do Volga, foi viver para Iasnaya Polanya, que tinha recebido como herança.

Em Outubro de 1848, mudou-se para Moscovo, dedicando-se a uma vida social tempestuosa e ao jogo de cartas. Foi uma enorme perda ao jogo, fruto da forma como arriscava somas consideráveis, que levou Tolstoi a alistar-se no exército russo e a combater no Cáucaso do Norte e na Crimeia. Neste período escreveu livros como Hadji-Murat (só publicado em 1900) e Infância, obra que tornou conhecido o seu nome. É também desta altura a publicação de Contos de Sebastopol.

Tolstoi regressa a São Petersburgo em 1855 e adere ao círculo literário Sovremennik (Contemporâneo), de que faziam parte grandes nomes da literatura russa como Nekrassov, Turgueniev, Ostrovsky, Gontcharov, etc. Porém, rapidamente fica cansado e, depois de se desmobilizar, realiza uma viagem pelo estrangeiro, visitando países como França, Itália, Suíça e Alemanha.

Regressado a Iasnaya Polyana em 1859, o escritor dedica-se ao trabalho pedagógico junto dos filhos dos camponeses, projecto que desenvolve até ao fim da vida, sendo autor de vários livros de pedagogia infantil.

Em 1863, casa-se com Sofia Bers e dá início à escrita de um dos romances que o vai imortalizar: Guerra e Paz, publicado na integra em 1869. Depois surge Anna Karenina, em 1876.

No período da crise espiritual, Tolstoi, além de Confissão, escreve A morte de Ivan Ilitch (1886), A sonata de Kreutzer (1889), O pai Serguey (1898), O cadáver vivo (1900), Depois do baile (1903) e, finalmente, o romance Ressurreição.

A profunda transformação do escritor levou a rupturas com a sociedade e conflitos na família. O escritor renunciou à propriedade privada, o que irritou particularmente a esposa. Por isso, no Outono de 1910, com 82 anos, o ancião, acompanhado apenas do seu médico pessoal, deixou secretamente Iasnaya Polyana, mas, durante a fuga, adoeceu e acabou por falecer na casa do chefe da estação de caminhos-de-ferro de Astapovo (hoje, renomeada Tolstoi). O seu funeral transformou-se num acontecimento nacional, não obstante as autoridades terem feito de tudo para que se transformasse numa gigantesca homenagem a um dos maiores escritores russos.

Em Fevereiro de 2001, Vladimir Tolstoi, um dos bisnetos do escritor, pediu a Alexei II, Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia, que levantasse a excomunhão contra o seu ilustre antepassado, mas a resposta da Igreja Ortodoxa foi: «É impossível rever, porque seria incorrecto fazer isso na ausência do homem abrangido pela sentença do tribunal religioso.»

 

José Milhazes


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