Cuidados Paliativos (1.º capítulo)

Posted by Hugo Neves on

O QUE SÃO OS CUIDADOS PALIATIVOS

Isabel Galriça Neto


 

Nos últimos anos tem-se falado mais de Cuidados Paliativos no nosso país. Certo é que, para uma parte significativa dos portugueses, incluindo muitos profissionais de saúde, este tipo de cuidados de saúde permanece desconhecido, ou então é olhado com alguma desconfiança devido aos preconceitos e ideias erradas a eles associados. Queremos aqui clarificar essas ideias e contribuir, sobretudo, para que, cada vez mais, os portugueses e as portuguesas que carecem deste tipo de cuidados não se vejam privados deles, em sofrimento desnecessário, seja por falta de informação, seja por dificuldades de acesso.
Na última metade do século xx a cura foi de tal forma «entronizada» como fim único da Medicina, que quase se esqueceu o verdadeiro mandato da mesma: acompanhar os doentes em sofrimento, quer eles se curem quer não. O que os Cuidados Paliativos vieram retomar foi precisamente a necessidade de assegurar que os doentes em fim de vida não sejam incorrectamente tratados e votados a um sofrimento que ninguém deseja. A Medicina moderna já tem hoje, através destes cuidados verdadeiramente interdisciplinares, a resposta para que os doentes com doenças graves, avançadas e irreversíveis não estejam em sofrimento intolerável.
Os Cuidados Paliativos correspondem a cuidados de saúde estruturados, multiprofissionais, aliando o melhor das competências técnicas que a Ciência e o Humanismo têm para dar aos doentes com doença grave e/ou incurável, avançada e progressiva. Para além de ajudarem os doentes, apoiam também as famílias nas suas perdas, antes e depois da morte do paciente, prolongando‑se pelo período do luto. Estes cuidados rigorosos e científicos, na sua vertente médica, assumem-se como uma verdadeira especialidade – a Medicina Paliativa –, já reconhecida há décadas em países como a Grã-Bretanha e, mais recentemente, o Canadá, os EUA, a Austrália e a Nova Zelândia.
Estes cuidados de saúde destinam-se a doentes de todas as idades (e não apenas a idosos) e patologias, sejam elas oncológicas ou não oncológicas, e são prestados ao longo de semanas, meses e até anos. São hoje consensualmente já considerados como um direito humano. Infelizmente, ainda hoje se pensa que os Cuidados Paliativos apenas servem para quem está à beira de morrer, e isso não é correcto. Importa clarificar que um doente terminal define-se como aquele que tem, em média, um prognóstico de 3 a 6 meses de vida, e é no caso dos doentes moribundos que o prognóstico será de dias ou horas. Um doente a carecer de cuidados paliativos não será necessariamente um doente terminal ou moribundo. Consequência desta ideia de que os Cuidados Paliativos só servem para os moribundos é o facto de muitos doentes com doenças graves e irreversíveis, bastante tempo antes do seu final de vida, não estarem a ser devidamente ajudados a ter melhor qualidade de vida, a não sofrer e a ter mais dignidade.
Ouve-se com alguma frequência a expressão de que «tem de se fazer tudo» por um familiar gravemente doente e que esteja em fim de vida, com uma doença incurável. Se se compreende o motivo razoável e nobre que está na base desta afirmação, já não se compreende a concretização da mesma através do recurso a medidas muito agressivas e inúteis (ditas desproporcionadas e fúteis), que só têm como consequência agravar ou prolongar o sofrimento da pessoa doente, que muitas vezes nem sequer foi ou é consultada nestas decisões. São decisões que podem erradamente iludir e tranquilizar a consciência dos familiares, algumas vezes mal aconselhados, numa atitude de «negação da morte», de ilusão de que a podemos controlar e de aposta no «triunfalismo da Ciência», e que só traz consequências nefastas para todos, doente e família. Comenta-se algumas vezes que passar a receber Cuidados Paliativos é «baixar os braços», numa clara alusão a uma derrota ou desistência que, face à inevitabilidade da progressão da doença e ao primado de só oferecer cuidados de saúde que proporcionem benefícios para o doente, não se confirma. Há sim que fazer tudo o que seja proporcionado e não fútil por um familiar doente – aquilo que lhe alivia o sofrimento e não o agrava –, aceitando a inevitável irreversibilidade de muitas situações de doença grave. Nestas situações, aceitar esta situação de terminalidade e assumir a necessidade de Cuidados Paliativos será até uma enorme prova de amor que se tem para com um familiar.
Neste contexto importa até sublinhar que os médicos não estão obrigados nem ética, nem clínica, nem legalmente, a prestar cuidados de saúde que sejam desproporcionados e inúteis, nomea­damente em situações de base irreversível. Isso implica que, no âmbito da relação médico-doente, que se pretende que funcione como uma aliança terapêutica, haja lugar para uma discussão serena e objectiva sobre a realidade da doença, sobre as diferentes opções terapêuticas e sobre as consequências de as realizar ou não. Só assim um doente poderá tomar decisões informadas, tendo inclusivamente o direito de poder recusar terapêuticas que, em seu entender e depois de devidamente esclarecido, não lhe tragam mais benefícios. Utilizar medidas diagnósticas ou terapêuticas que, num determinado contexto clínico e para um determinado doen­te, sejam demasiado agressivas e acarretem maior sofrimento – ditas desproporcionadas e fúteis – configura má prática clínica, aquilo que se costuma denominar de obstinação terapêutica. Por outro lado, importa reforçar que na prática de Cuidados Paliativos se respeita inquestionavelmente o valor e a inviolabilidade da vida humana. Nessa medida, tomam-se todas as medidas que proporcionem o alívio do sofrimento, mas nunca que provoquem intencionalmente a morte daquele que o experimenta.
Algumas vezes comenta-se que os doentes podem ficar traumatizados por serem devidamente informados e assumirem, como é seu direito, que carecem de Cuidados Paliativos. Em primeiro lugar há que questionar se esses mesmos doentes e as suas famílias não ficarão traumatizados, isso sim, pelo facto de não receberem os cuidados de saúde adequados ao seu sofrimento e às suas necessidades, quando claramente se sabe que a doença está numa fase irreversível. Assume-se, com esta atitude de negação, que, por não falar dos factos reais com os doentes, essa mesma realidade não terá lugar, como se existisse uma «magia protectora» que faz com que aquilo de que não falamos não se concretize. Nada de mais errado… Quando não se fala com os doentes da realidade menos agradável, a doença evolui na mesma, e o doente é confrontado, em solidão, com esses mesmos avanços, com as suas consequências, e, supostamente, não pode pedir ajuda porque lhe dizem que «está tudo bem», que «não se preocupe». Desta forma, sofre habitualmente muito mais do que se fosse gradualmente preparado para as «más notícias» e devidamente acompanhado. Nunca será demais destacar que, ainda que a doença progrida e o doente não se cure, ele não necessitará de estar desconfortável e em sofrimento físico. Mais, existem hoje técnicas de comunicação correctas, que se treinam e ensinam, e que fazem parte das ferramentas dos Cuidados Paliativos, para saber transmitir devidamente a informação que é importante para o doente, e também para o poder acompanhar quando recebe e processa essa mesma informação. Igualmente serão tidas em conta as situações em que o doente revele não pretender ser informado.
Também para muitos profissionais de saúde, nomeadamente para alguns médicos, a incurabilidade e a morte são vistas como insucessos, como derrotas pessoais – e os doentes como «derrotados». Isso confronta-os na sua prática e leva-os algumas vezes a terem manifesta dificuldade em lidar com essas situações de fim de vida. Importa lembrar que a morte, apesar de todos os progressos da Medicina, do profissionalismo e empenho de médicos, enfermeiros e outros, continua hoje a ser uma inevitabilidade. Tentar fazer de conta que assim não é não nos tem ajudado como colectivo e até individualmente a lidar com ela de forma mais construtiva. Reiteramos aqui a necessidade de os médicos e os outros profissionais de saúde estarem devidamente preparados para prestar tanto cuidados clínicos de índole curativa como também de índole paliativa. Dessa forma, estarão seguramente mais próximos dos que sofrem, e serão também melhores profissionais.
Para prestar cuidados a este vasto grupo de doentes, exige-se hoje uma preparação técnico-científica rigorosa em diferentes âmbitos, e nunca poderemos falar desta fase como uma em que apenas é necessário «amor e carinho», ou então de uma fase em que «não há nada a fazer». Infelizmente, sabemos que na prática, e por profundo desconhecimento que só prejudica os doentes, é ainda muito frequente achar que estes doentes só precisam de «afecto», e são aqueles sobre quem se diz, também por desconhecimento, que «não há que investir» (como se «investir num doente» fosse apenas sinónimo de utilizar medidas mais invasivas). Desta forma, colam-se aos Cuidados Paliativos ideias de menorização e de cuidados de saúde de segunda, que efectivamente não são. Mesmo quando não se cura um doente – e em pleno século xxi a morte continua a ser uma inevitabilidade –, ainda há muito a oferecer-lhe para que tenha Dignidade, Conforto e Qualidade de Vida. Os Cuidados Paliativos são, pois, profundamente necessários e ajudam o paciente a viver tão activamente quanto possível até ao fim. Centram-se na importância da Dignidade da pessoa, ainda que doente, vulnerável e limitada, aceitando a morte como uma etapa natural da VIDA que, até por isso, deve ser vivida intensamente até ao fim.
Há milhares de doentes – e famílias – a carecerem deste tipo de cuidados. É o caso de muitos doentes com cancro (cerca de 50% dos doentes com cancro não se curam), dos doentes de sida em estádio avançado, dos doentes com as chamadas insuficiências de órgão avançadas (cardíaca, respiratória, hepática, renal), dos doentes com doenças neurológicas degenerativas e graves (como a esclerose lateral amiotrófica ou alguns casos de esclerose múltipla) e dos doentes com AVCs e demências em estádio muito avançado. Esses doentes podem ser tratados em internamento ou no domicílio. Pode até ser útil e necessário um doente ir a uma consulta de Cuidados Paliativos, ou então ser internado numa unidade especializada, e depois poderá ter alta e voltar para o domicílio, onde poderá também receber cuidados clínicos. Há pessoas a receberem Cuidados Paliativos e a trabalharem, e não têm necessariamente que estar acamadas.
Se atendermos ao facto de os Cuidados Paliativos terem como objecto não só o doente mas também a sua família, e também que o caso de cada doente tem no mínimo impacto em pelo menos três pessoas do seu círculo próximo, rapidamente chegaremos à conclusão de que estas serão situações que atingem todas as famílias portuguesas, na ordem de grandeza de pelos menos 180 000 pessoas em cada ano. Noutro capítulo iremos explorar mais detalhadamente as principais questões referentes às famílias que vivem estas situações de doença e sobre o tipo de apoios que lhes devem ser prestados.
Queremos frisar que este tipo de cuidados de saúde são cuidados activos, baseados em conhecimentos científicos bastante rigorosos, e profundamente humanizados. De facto, existem hoje sociedades científicas credíveis de Cuidados Paliativos – a nível nacional existe a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (www.apcp.com.pt), e a nível internacional destacamos a European Association for Palliative Care. Ambas organizam congressos e reuniões científicas regulares, com forte participação e envolvimento dos profissionais. Existem compêndios de Medicina Paliativa (alguns já da autoria de profissionais portugueses), revistas de reputada e inquestionável qualidade onde se revela investigação robusta e credível praticada por médicos e outros profissionais credenciados. Existem mesmo recomendações da própria Comunidade Europeia sobre a obrigatoriedade de ensino da Medicina Paliativa nas Faculdades de Medicina (o que infelizmente ainda não é cumprido na maior parte das faculdades portuguesas, sendo, no entanto de ressaltar, a este nível, o trabalho pioneiro da Faculdade de Medicina de Lisboa) e também a nível pós-graduado. Aquilo que se investiga, aquilo que se deve ensinar e depois praticar, é Medicina no seu melhor, onde intervenções sobre o controlo sintomático, sobre a comunicação adequada, sobre o apoio à família e sobre o trabalho em equipa são rigorosamente tratadas.


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