Miguel Morgado sobre «O Homem que era Quinta-feira»

Posted by Afonso Reis Cabral on

 

 

Um longo Domingo de pesadelo ou de gratidão

Miguel Morgado

 

 

Começando pelo princípio. Este livro tem um título e um subtítulo. O título é famosíssimo. O subtítulo passa muitas vezes despercebido. O título é enigmático até ao extremo. O subtítulo é simples: "um pesadelo". Este dado é importante. Não só porque nos introduz imediatamente às ambiguidades, às intermitências, à precariedade da relação espaço-tempo, ao entrecruzamento do belo e do grotesco, e, em geral, ao fantástico que nos aguarda. Mas também porque nos sugere a subtileza da obra.

Um pesadelo não é simplesmente um sonho desagradável. Na sua estrutura, pesadelo e sonho obedecem a dinâmicas diferentes. Um aspecto importante parece ser este: o pesadelo não pode prosseguir indefinidamente. Segue uma espiral mais ou menos definida. Após a confrontação inicial com o objecto de pavor ou de ansiedade, segue-se uma espiral em que esse objecto se aproxima e o pavor cresce - até ao momento de clímax em que somos vencidos por aquilo que nos assusta, em que as nossas últimas forças de resistência são quebradas, e por um momento final em que vislumbramos o contacto fatídico. Aí o pesadelo termina e a vigília regressa abruptamente, porque a tensão é excessiva. A necessidade de recompor a ordem da salvação impõe-se ao organismo, e não sem um violento sobressalto - e não sem lesões perdurantes - o contacto com a realidade da vigília literalmente acorda-nos para a vida.

O Homem que era Quinta-feira é a descrição de um pesadelo. E inclui o momento de recuperação, assinalado paradoxalmente, não no final, como seria de esperar, mas no prelúdio - no poema dedicatório ao seu amigoEdmund Bentley. Um amigo companheiro de estrada, de pesadelos e de despertares. Precisamente, o tipo de amigo com quem os detalhes e o significado último do pesadelo e do despertar podem ser inteiramente partilhados. O único que pode compreender todas as sílabas. Quem não tem os mesmos sonhos – ou os mesmos pesadelos –, escuta sempre com impaciência o seu relato de boca alheia.

Claro que no final da narrativa é-nos descrito o despertar de Gabriel Syme. Mas o facto de o despertar ser anunciado logo no início do livro é um ponto importante a reter na tarefa de compreensão. De certa maneira, sem o despertar não chegamos à plena consciência de que se trata – ou tratou – de um pesadelo. E Chesterton quer garantir que compreendeu o significado do pesadelo e do despertar.

Se quisermos traçar paralelos estritos, então podemos dizer que a retoma da vigília é dada no plano filosófico pela recuperação do "common sense". É essa uma das suas manifestações centrais. A expressão inglesa "common sense" é mais ambivalente do que a nossa tradução literal. Ela designa simultaneamente senso comum e bom senso - o sentido e interpretação da vida apreendidos pelas pessoas comuns, por um lado, e, por outro, a razoabilidade e a integridade desse sentido e dessa interpretação. Reflecte a capacidade básica e partilhável dos seres humanos para, na sua experiência comum, apreenderem as coisas óbvias precisamente como obviedades. Dessa apreensão a partir da experiência, o “common sense” retira conclusões não contraditórias e forma convicções. É, no fundo, uma capacidade para interpretar o mundo sem os impasses da intelectualização excessiva. É o recurso espiritual primevo para distinguir o bem do mal, a boa conduta da má conduta. É intuitivo e obedece às dinâmicas da intuição, mas não cede ao delírio da intuição mística ou irracional que se pretende desligada da experiência concreta. É uma outra forma de realismo – existencial, não metafísico. É o sentido elementar da realidade. Esse sentido da realidade não seria possível se o “common sense” não fosse ele próprio comum, isto é, se não fosse aquilo que as pessoas em comum, ou em conjunto, vêem, sentem, pensam, discernem.

Em certa medida, o primeiro diálogo entre Syme e Gregory, o anarquista, é já um duelo entre o “common sense” e a sua negação. Gregory explicita o seu desdém pelos modos de vida habituais e declara uma revolta perpétua contra Deus por Ele não ter feito o universo à medida das experiências exóticas na arte de viver que procedam da insubmissão a qualquer tipo de ordem. O “common sense” mede forças com um entendimento da existência decorrente de preferências puramente estéticas. Afinal de contas, Gregory é, ou quer ser, um poeta. Claro que ele não percebe, como Syme indica, que a desordem não é poética – apenas a ordem é bela e poética. Gregory é o anarquista, ou melhor, ele é o perfeito aprendiz de anarquista, como revela a sua ingenuidade, a sua displicência e a sua fundamental ignorância. E é também aprendiz pela sua juventude. É nesse período da vida que a cegueira dogmática pela abolição dos dogmas é mais implacável. A juventude e a ideologia da desordem são para Chesterton uma combinação perigosíssima e, por vezes, literalmente explosiva.

A tradução política da ideologia da desordem é o anarquismo. Mais rigorosamente, Chesterton escolhe o anarquismo como a mais acabada ideologia política da filosofia do niilismo ou do “pessimismo”. A escolha do anarquismo como tradução prática do “pessimismo” foi, em parte, filha de uma determinada época. O ano da publicação de O Homem que era Quinta-feira – 1908 – situa-se numa época em que o anarquismo enquanto movimento político e terrorista afigurava-se como uma das grandes ameaças do tempo.

Para dar apenas dois exemplos, um na esfera política, outro na esfera literária. Em 1901, o Presidente dos EUA Theodore Roosevelt escolheu como tema da sua mensagem ao Congresso sobre o “Estado da União” a denúncia da ameaça anarquista na América, na sequência do assassinato do seu antecessor McKinley três meses antes.

Em 1907, um ano antes da publicação de O Homem que era Quinta-feira, Joseph Conrad publicara The Secret Agent, um livro muito diferente, mas que incluía como um dos seus protagonistas um anarquista terrorista apostado em fazer explodir um símbolo da ordem política, social e tecnológica inglesa. [1] Foi inspirado no facto real da tentativa surpreendente de dinamitar o Observatório de Greenwich. Era a resposta literária a anos de atentados bombistas e assassinatos de altos dirigentes das nações e dos impérios. Foram os anos da “propaganda pelo acto”. [2]

Mas foi produto de um determinado contexto histórico apenas em parte. Na verdade, não é difícil traçar a correspondência entre o “pessimismo” – a filosofia de vida, ou de morte, que constituía o inimigo de Chesterton – e o anarquismo enquanto filosofia política. Para Chesterton, tal como o pessimismo é a doença espiritual por excelência, também o anarquismo é a doença política paradigmática. Porém, é preciso ver que no livro o anarquismo tem uma função alegórica: dar um sentido prático e político no desenrolar da narrativa a uma questão fundamentalmente intelectual. O que está em causa é, como diz o polícia que primeiro contacta Syme, “uma conspiração puramente intelectual [que] em breve ameaçaria a própria existência da civilização”. Depois concretiza: “…os mundos científico e artístico estão movidos silenciosamente numa cruzada contra a Família e contra o Estado”. Assim, os polícias desta força especial são “filósofos”. Só com filosofia se pode combater a filosofia. Tal como numa “caçada à heresia”. Porque, diz o tal polícia-filósofo, “agora o criminoso mais perigoso é o filósofo moderno que não admite qualquer lei”.

Pode-se dizer, portanto, que o final do século XIX estava ameaçado politicamente pelo movimento anarquista - ou pelo menos que assim se sentia. Mas espiritualmente pelos avanços do pessimismo, com manifestações que contagiavam inclusivamente o mundo da arte, encurralando a expressão artística no mais empobrecedor solipsismo. Ora, para Chesterton, tudo isto representava uma ameaça existencial para o homem que se encarregaria inclusivamente de anular todas as conquistas do “progresso” da humanidade, como a ciência e a tecnologia. A ciência e a tecnologia ao serviço de uma alma doente seriam não só estéreis e inúteis, mas sobretudo perigosas.

Resta saber se a ameaça era avassaladora, ou não. O primeiro diálogo parece indicar que a ameaça anarquista/pessimista é mais frágil do que se anuncia. Porém, o percurso argumentativo nesse diálogo não visa só estabelecer as fragilidades ou as contradições internas do anarquismo e da vontade de rebelião. Visa igualmente a exploração de algo mais profundo. De algo que tem de ser conhecido de perto, e que obriga a uma descida. Por conseguinte, há uma estratégia argumentativa que se confunde e mistura com uma refutação substantiva da ameaça.

Com efeito, é verdade que Syme provoca Gregory mais eficazmente quando acusa a sua orientação e o anarquismo em geral de inconsequência; quando os acusa de serem incapazes de irem até à última das consequências das suas premissas e propósitos. É nesses momentos que Gregory mais desliza e mais se expõe. Um dos desbloqueios da narrativa consiste num compromisso muito estranho de Gregory. Syme apenas tem acesso ao Conselho dos Anarquistas porque Gregory não o denuncia. E Gregory não o denuncia porque promete não revelar o que Syme lhe quer dizer. Syme quer-lhe dizer que é um poeta-polícia da ordem, cuja função é perseguir anarquistas, ou mais precisamente as ideias anarquistas. Mas invoca implicitamente a regra da reciprocidade – também ele prometera não denunciar Gregory à polícia – para obter o compromisso e a promessa de reserva de Gregory.

A dúvida que se coloca é, porém, a seguinte: por que é que Gregory não trai a sua promessa a Syme de não o denunciar aos presumíveis colegas anarquistas? Por que é que a sua palavra, ou a sua honorabilidade, têm valor para um anarquista? Por que é que ele confere permanência e constância a esse valor? Não seria mais coerente para quem quer casar a rejeição da lei com a arte violar a lei da promessa e assim fazer da denúncia de Syme uma forma de arte?

Estranhamente, tal não sucede e Gregory cede naquilo que para si é mais sagrado. Portanto, Gregory reconhece algum limite à desordem, um limite que paradoxalmente é mais sagrado para si do que aquilo que aparentemente seria mais sagrado – a sua devoção à causa da desordem. No diálogo, Gregory apercebe-se da armadilha em que caiu e invectiva Syme dizendo “Tu és um demónio!”. Ao que Syme responde, dizendo com um rigor irónico: “E tu és um gentleman”. Logo a seguir, Syme lança alguma luz sobre este problema, ao notar que ambos são tão diferentes, com propósitos tão diferentes, que “nada é possível entre nós que não a honra e a morte”. Finalmente, antes de se despedirem daquela primeira noite alucinante em que Syme, o polícia-poeta da ordem se torna clandestinamente um dos chefes clandestinos do movimento anarquista internacional, ele agradece a Gregory por este ser “um homem de honra”. Mas permanece o problema da permanência da honra. Porquê a honra? Por que é que ela salta por cima das divergências doutrinárias, espirituais, morais e políticas, sobretudo quando elas são tão profundas ao ponto de definirem uma inimizade?

No poema introdutório, Chesterton admite que as ideias novas comprometem a própria ideia de honra também. Já nas primeiras páginas do pesadelo, Gregory parece não ceder qualquer terreno neste ponto. Mas Syme força-o com o seu desafio à coerência, ou "seriousness", da causa anarquista a ir mais longe do que ele pretende. É em nome da sinceridade, ou coerência, que Gregory arrisca tudo - incluindo a sua "vida e honra". E, por alguma razão, a mesma seriousness ou sincerity o leva a cumprir a mais fatal de todas as promessas que fez em toda a sua vida. Que razão será essa? Recordemos que o texto não revela exactamente um compromisso existencial com a coerência, mas algo inferior. Gregory pretende mostrar que Syme está errado. Sente-se irritado por Syme, e quer vergá-lo. Quer vergá-lo à superioridade da sua filosofia. Quer vergá-lo à superioridade da filosofia do caos face à filosofia da ordem. Mais: o que o impele é a vontade de arrancar uma confissão de derrota a Syme. Numa palavra, o que o impele é a vontade de ser superior, a vontade de poder - uma manifestação - talvez a manifestação - do orgulho. É a origem do pecado humano - o pecado de todos os pecados - que o leva à sua queda. Uma queda, é bom dizê-lo, não na desordem, mas na ordem. Temos de ver este aspecto como a inversão da inversão e portanto o regresso à norma. Nesse sentido, trata-se de uma queda que é, na verdade, um levantar.

É a fraqueza que o leva ao vínculo incompreensível com a promessa. Até a paixão que mais nos leva à revolta contra a ordem nos reconduz a um dos princípios da ordem moral - se bem que apenas um princípio: a fides. Não estamos muito distantes da demonstração feita por Santo Agostinho, na Cidade de Deus, de que Roma, a prototípica cidade do homem, a cidade do orgulho, não deixara de produzir pelo menos a imagem da virtude – ou, por outras palavras, não deixar de permitir alguma aproximação às virtudes humanas.

Como vimos, tal poderia indicar que a ameaça não seria assim tão perigosa. Mas não devemos subestimar que uma grande parte do livro se ocupa dos receios de Syme de que o confronto com o caos não tem a vitória garantida.Syme está decidido e comprometido a lutar contra as forças da desordem e do mal. Está decidido e comprometido a bater-se até ao fim pela Criação e pela sua bondade, como reconhece no duelo com o Marquês. Mas vê-se assaltado frequentemente pelas dúvidas, pelas hesitações, pelos receios, pelas ameaças de um desespero triunfante. Atemoriza-o a dúvida de que resistirá até ao fim nessa luta e de que o lado da luta pelo qual alinha seja suficientemente forte. Em parte, é isso que nos dá o pesadelo [3]. Não devemos subestimar que a sofística pode aparecer como um pesadelo que é preciso contrariar. [4] Porquanto a rendição ao cepticismo pessimista é, para Chesterton, equivalente à proibição de “existir intelectualmente”, isto é, de fazer perguntas e tentar dar respostas, incluindo as perguntas e respostas mais fundamentais: as do sentido da existência. [5]

E convém dizer que esses receios não se circunscrevem à personagem de Syme. O próprio Chesterton inscreve na sua biografia os receios logo no poema dedicatório quando declara que “esta é uma história desses velhos receios” (“This is a tale of those old fears”) entretanto vencidos, embora não facilmente. Alguém disse que todos os livros de Chesterton são autobiográficos. Talvez haja exagero na proposição. Mas não quando se aplica a O Homem que era Quinta-feira. Num artigo que publicou no Illustrated London News, no dia de véspera da sua morte em Junho de 1936, Chesterton explicou que O Homem que era Quinta-feira “teve como intenção descrever um mundo de dúvida e desespero selvagens que nessa altura os pessimistas em geral descreviam; apenas com um raio de esperança nalgum sentido duplo da dúvida, que até os pessimistas sentiam de uma maneira espasmódica”. Dois anos antes escrevera que “de facto, foi em larga medida por causa do pessimismo que eu comecei a escrever”. [6]

Syme tem uma âncora, no entanto. Uma âncora que nunca poderia ser uma ideia, nem a memória de um acontecimento, e muito menos uma vontade subjectiva passageira. A sua âncora é, como não poderia deixar de ser para Chesterton, uma pessoa. O chefe da polícia intelectual que o recrutou, e que, tal como ele descobrirá ao longo da história, recrutou igualmente todos os restantes membros do Conselho dos Anarquistas – à excepção de Domingo. O chefe da polícia da ordem é o homem que recruta e inicia os agentes da ordem que vão para o terreno quebrar as forças da desordem. Convocou Syme, como convocou todos os restantes: numa sala na penumbra, de rosto invisível, mas transmissor de uma confiança sagrada numa missão épica.

Contudo, nós sabemos por que é que Domingo é o único que não foi recrutado pelo chefe da polícia. Pela simples razão de que eles são a mesma pessoa. O facto paradoxal é que, sendo a mesma pessoa, apareça com identidades tão distintas, na medida em que Domingo aparenta ser em tudo uma pessoa contrária ao chefe da polícia. Entre eles parece não haver qualquer sintonia. Pelo contrário, a única relação que parece ser possível é a da mais mortal inimizade. Um pouco à semelhança de Syme e Gregory.

Inicialmente, Domingo é-nos apresentado como o líder do movimento anarquista. Nesse sentido, Domingo é o líder da filosofia da desordem, do caos e da decadência. Já sabemos que essa filosofia tinha um nome: “pessimismo”. O pessimismo é evidentemente um ateísmo – embora haja “religiões pessimistas” – e um cepticismo. É também um anti-realismo metafísico. E finalmente um modo de niilismo. Chesterton não se coíbe de nesta e noutras obras associar o “pessimismo” e todos estes ismos à “filosofia alemã”, e embora não faltem comentadores que elejam Nietzsche como o filósofo que estaria na mira de Chesterton, quem, de facto, reúne todos estes epítetos é, sem dúvida, Schopenhauer - o filósofo do pessimismo, por excelência [7]. De resto, Chesterton reconhece que nas teses mais pessimistas de Nietzsche, como a do Eterno Retorno, já se confundem as raias da sua loucura. Chesterton descreve estas teses como contraditórias com as anteriores reflexões de Nietzsche, plenas de “inspirações de liberdade selvagem ou de inovação criativa e refrescante”. [8] E, para Chesterton, só um outro filósofo se pode pôr entre a humanidade e o desespero: Tomás de Aquino. Tomás de Aquino é o representante do mais autêntico “optimismo”. [9] Optimista num sentido delimitado, isto é, optimista porque “acreditava na Vida”. [10]

Mas é provável que este confronto não se resolva no plano imanente da filosofia. Precisamos, pois, do plano mais elevado de todos - o Deus criador e redentor. E precisamos do plano mais prosaico de todos - o "common sense" do "common man". Uma prosa que, como já sabemos, descreve a beleza poética do mundo sem a esvaziar. É como se a filosofia não pudesse dispensar um socorro acima dela e outro socorro abaixo dela. Será que só bem amarrada por cima e por baixo é que a filosofia não degenera em sofística?

Convém recordar que para Chesterton o “tomismo é a filosofia do common sense”, conclusão que, por sua vez, é tipicamente common sense[11] Em grande medida, o tomismo é a filosofia do common sense porque o Cristianismo com a doutrina da Encarnação reabilitou o corpo. Se a filosofia de Tomás de Aquino começava com as “raízes inferiores do pensamento, com os sentidos e os truísmos da razão”, isso decorria de o Cristianismo ter dado uma “nova razão”, um poderoso fundamento teológico para fazer dissipar a vontade “platónica” de dissipação dos “sentidos, das sensações do corpo e das experiências do homem comum”. [12]

Em contraposição, segundo o “pessimismo” o ser humano é um corpo estranho num mundo que lhe é estranho. Isso remete imediatamente para a questão da ordem do universo. Precisamente, essa ordem é destituída de fundamento e a miséria do ser humano a sua mais patente negação. Há uma separação total entre a existência humana e uma putativa ordem natural – que lhe é hostil, ou na melhor das hipóteses indiferente. O mundo é essencialmente contraditório porque encerra na própria existência humana contradições impossíveis. E a maior contradição parece ser esta: o homem é um ser livre, que escolhe os seus próprios propósitos e fins; mas ao mesmo tempo a definição dos fins e a desadequação dos meios disponíveis para os alcançar fazem a liberdade colidir com a felicidade desejada. Resta o sofrimento irredimível como sentença da vida humana. Um sofrimento injustificado, sem um desenlace que lhe dê sentido. Um sofrimento, entenda-se, que não é apenas dor. Schopenhauer não se cansa de insistir que o alívio da dor reverte somente para o triunfo do aborrecimento, de uma sensação de vazio da existência. A dor é contrária ao aborrecimento, é certo. Contudo, o esforço humano para a superação da dor, e que nos arreda do aborrecimento, tem como objectivo inadvertido, não intencionado, mas nem por isso menos inexorável, o aborrecimento que seca o espírito. Nesse sentido, o ritmo da vida é apenas determinado como uma caminhada para a morte – que é também ela fonte de angústia e de desertificação da esperança. Aos olhos do pessimismo, o suicídio pode envergar uma capa negra de ambivalência. Assim, as aspirações, os actos e os pensamentos humanos caem num abismo de ausência de valor e de futilidade. Nada resiste a essa queda. Nada pode ser salvo. Não há nada por que se regozijar. Não há nada a agradecer. [13]

Podemos avançar sem correr grandes riscos que a primeira resposta de Chesterton ao desafio do pessimismo é simples e pode ser enunciado de modo simples. O pessimismo é cego. Não é capaz de ver. Ver o quê? Precisamente a coerência orgânica do todo da realidade. O tamanho de Domingo tapa tudo o resto. A visão humana é absorvida pela sua dimensão. Claro que estamos a falar de uma visão toldada. Uma vez mais, a visão do “common sense” é mais ampla e de maior alcance do que a da filosofia da desordem. É “sanidade”.

Aqui é importante reconhecer que a vida humana não se confunde pura e simplesmente com a ordem da criação. É um aspecto especial e destacado da ordem da criação. Mas não é contraditória com ela. Além disso, a vida humana não é uma excepção desligada da ordem natural e em conflito com ela. É antes uma espécie de privilégio orgânico. Trata-se de um privilégio, entre outras razões, porque só o ser espiritual que é o homem pode fruir do valor das coisas que têm valor. Por esse privilégio orgânico, por esse “milagre”, a única disposição justificada tem de ser, não o desespero, não a resignação, não a rebelião, mas a gratidão. A gratidão não se consuma em momentos particulares de êxtase. Ela deve ser um “acompanhamento constante da vida”. Mais: a gratidão pela gratuidade e pelas possibilidades do ser não é um fardo de obediência; quando emerge à consciência na ligação com o todo da realidade, a gratidão é uma expressão da mais fundamental alegria. [14]

Note-se, porém, que visão e gratidão estão profundamente ligadas. Não só porque a gratidão resulta do que vemos. Mas também porque a gratidão ao sustentador do Ser pressupõe um acto de fé que abrange a na relação entre os nossos pensamentos e a realidade.[15] Uma vez mais, é uma questão de sanidade. Esse acto de fé é são, racionalmente são.

Diz Chesterton noutra obra: “Nenhum homem começa a pegar fogo a Londres na convicção de que o seu criado em breve o acordará para tomar o pequeno-almoço. Mas que eu, num dado momento, não estou a sonhar não pode demonstrado nem é demonstrável.” E continua: “Todos os homens acreditam que existe uma espécie de obrigação sobre nós que nos faz interessar nesta visão ou panorama da vida. Todos julgariam errado o homem que dissesse: ‘Eu não pedi esta farsa e aborrece-me. Sei que uma idosa está a ser assassinada no andar de baixo, mas eu vou dormir.’ Que existe um dever de melhorar as coisas que não fizemos é algo que não está demonstrado nem é demonstrável”. [16] Ora, precisamente na sequência deste dever de melhorar as coisas, ergue-se mais uma razão de rejeição categórica do pessimismo. A de que, por o pessimismo ser uma “paralisia do espírito, uma impotência intrinsecamente indigna de um homem livre”, é também a aceitação da tese de que nada pode ser melhorado. É que “a menos que amemos uma coisa em toda a sua fealdade, não poderemos torná-la bela”. [17] O pessimista não pode amar porque nada merece o seu amor. Então, a tarefa de jardineiro da criação torna-se absurda. Um dos membros do Conselho Anarquista diz que “todo o homem sabe no fundo do coração que nada é digno de ser feito”.

O anarquista permite-se alimentar, no entanto, uma outra possibilidade: a de refazer a criação – pelo menos, no plano político e social. Tal é a sua ingenuidade. Aqui percebemos também uma ligação implausível e insustentável entre Schopenhaeur e o anarquista. Schopenhauer não aponta para uma superação prática do problema humano fundamental porque não há superação disponível. E muito menos para o activismo político redentor. Ele não indica o caminho da rebelião. Mas se a rebelião, como defende o anarquismo, for o meio de criação de um novo mundo (na arte, na moral, nas relações sociais, na política), então a resignação ascética de Schopenhauer pode aparecer como uma resignação tímida e censurável da filosofia.

Porém, esta hipótese só é válida para a “secção exterior” do movimento anarquista, segundo o polícia que interpela Syme em primeiro lugar. Está até disponível para dizer que a secção exterior pode ser denominada de “inocente”, na medida em que supõem que os males e as injustiças são o produto de um sistema mau. Já a “secção interna” não acredita nesta possibilidade de redenção imanente. Podem verbalizar essa crença, mas apenas para mobilizar o apoio inadvertido dos “inocentes”. Para os membros do núcleo duro, a liberdade só pode ser a morte e a libertação é o suicídio. Segundo os homens do anarquismo autêntico, o atentado bombista não pretende assassinar o rei. Pretende assassinar.

Domingo é enorme, forte, carismático, inteligente, arguto, cruel, medonho, perigoso. Mas a nossa perplexidade, num livro repleto de perplexidades, explode quando descobrimos que afinal Domingo era a mesma pessoa que constituía a âncora de Syme, o polícia que o recrutou e aos demais espiões no Conselho Anarquista. Quem é Domingo? Quem é aquela pessoa que foge pelas ruas montado num elefante? Numa entrevista em que Chesterton foi directamente questionado sobre a personagem de Domingo, ele respondeu: “Bem, pode chamar-lhe Natureza, se quiser. Mas notará que eu sustento que, quando a máscara da Natureza é levantada, encontramos Deus por detrás. Toda a exuberância selvagem da Natureza, todas as suas estranhas partidas, toda a sua aparente indiferença às necessidades e sentimentos dos homens, tudo isso é só uma máscara. É uma máscara que os nossos Lucien Gregorys pintam, mas que nunca conseguem levantar. Tenha em atenção que eu penso que não faz mal que não saibamos tudo acerca daqueles que nos rodeiam, que tenhamos de lutar na escuridão, ao mesmo tempo que temos a fé de que a maioria dos homens estão no lado correcto, pois para ter coragem a alma dos homens tem de estar só até ao momento em que finalmente fica a conhecer tudo.”

Domingo pode ser dúplice porque a Natureza na sua aparência superficial também ela é dúplice ou ambígua. Ela aparece-nos inicialmente com uma máscara, uma máscara que apresenta e oculta. Presumivelmente, a natureza inclui a natureza humana. E também esta é dúplice: com ela podemos descer às trevas, mas com ela podemos realizar as virtudes humanas. Mais, a graça que nos eleva ao Absoluto não opera pela destruição da natureza, mas antes pelo seu aperfeiçoamento cooperativo. Combinamos a centelha do divino com apetites animais.

O lado ruim de Domingo é a expressão de “algo tanto grosseiro, como triste na Natureza das Coisas”. Ele é “abstracção combinada com crueldade”, tal como os animais na floresta são “simultaneamente inocentes e implacáveis”. Depois de cada um dos espiões ter dito algo sobre Domingo, Syme nota que, apesar da dissonância das várias descrições, havia um ponto comum em todas: a comparação de Domingo ao universo. Syme recorda que, quando o viu pela primeira vez, estava ele de costas, não teve dúvidas de que se tratava do “pior homem do mundo”, de um “animal selvagem vestido com roupas de homem”. Mas quando ele se virou, Syme até se assustou com a beleza e a bondade do rosto de Domingo. De costas era um “animal”. De frente, um “deus”. Domingo é tudo. É o deus Pan – é literalmente tudo, e também o Pânico. Na mitologia grega, Pan também era metade humano, metade bicho e frequentava a companhia de Diónisos. Quando nasceu, assustou a sua mãe, mas os deuses do Olimpo acolheram-no com alegria. É, enfim, uma boa representação da Natureza.

Ver Domingo é como lidar com a experiência da vida humana no universo: ora “o mau é tão mau que não conseguimos deixar de pensar que o bom é um acidente; [ora] o bom é tão bom que nos sentimos confiantes de que o mal pode ser explicado”. Syme é enfático ao transmitir a lição que aprendeu – o “segredo do mundo inteiro”. Até agora só conhecemos as costas do mundo e, portanto, a sua brutalidade. É preciso conhecer o rosto do mundo. É esse o desafio fundamental.

Mas na verdade o texto do livro aponta para algo mais do que a Natureza. Domingo apresenta-se como a mesma pessoa que, sentada na escuridão, recrutou cada um deles para um combate épico. Um combate que teria de ser travado quando todo o universo parecia estar do outro lado da trincheira. À pergunta “quem és tu?”, Domingo responde: “Eu sou a Paz de Deus”. Um dos outros companheiros das aventuras assenta que ele é o “optimismo”.

Syme compreende finalmente o sentido da sua epopeia e do seu pesadelo. “Cada coisa que obedece à lei tem de ter a glória e o isolamento do anarquista.” É assim com cada combatente pela ordem. Syme compreende finalmente o sentido do seu sofrimento. Sobretudo quando descobre que também Domingo sofreu nesse combate. A última coisa que Syme escuta no seu sonho, provinda de uma voz distante, é a citação de Marcos 10:38 “Podeis vós beber do cálice que eu vou beber?” – o cálice de sofrimento que daria o direito aos Apóstolos de se sentar à esquerda e à direita do Messias.

Syme compreende finalmente que o sofrimento não é em vão. Que é uma parte do caminho para a esperança e para a alegria infinita. Já na vigília, Syme sente uma felicidade insuperável, a de ser portador de boas notícias sobre aquilo que verdadeiramente importa, sobre a única coisa que importa. O sofrimento não aponta para o suicídio; aponta para a vida. Para a celebração da vida. Não apenas para a esperança escatológica mas para a afirmação da vida, aqui e agora.

Em O Homem que é Quinta-feira isto é a única coisa que acaba por importar.

 

 

 

 * Comunicação proferida no colóquio "Chesterton, o homem que era hoje" (29-05-2014), da Universidade Católica Portuguesa.

 

 

 

[1] Em O Homem que era Quinta-feira há uma passagem que parece reflectir exactamente a descrição do terrorista anarquista de Conrad: [Sobre Syme] “…there was no anarchist with a bomb in his pocket so savage or so solitary as he”.

[2] Aliás, The Secret Agent sucede à publicação no ano imediatamente anterior do pequeno conto de Conrad, An Anarchist: a Desperate Tale.

[3] Mark Knight, Chesterton and Evil (Nova Iorque: Fordham University Press, 2004), p. 91.

[4] Ver Chesterton, Saint Thomas Aquinas (Londres: House of Stratus, 2000), p. 34. A ressaca do último “combate” de Tomás de Aquino com Suger de Brabant é descrita como o “último pesadelo de sofística”.

[5] Saint Thomas Aquinas, p. 37.

[6] Citado em Quentin Lauer, G. K. Chesterton: Philosopher without Portfolio (Nova Iorque: Fordham University Press, 1991), p. 77.

[7] Arthur Schopenhauer, Studies in Pessimism, trad. inglesa (?: Pennsylvania State University, 2005), vol. IV; The World as Will and Representation, trad. inglesa (Cambridge: Cambridge University Press, 2010). Ver Chesterton, Saint Thomas Aquinas, pp. 25, 26. Ver os comentários de Chesterton a propósito da subida ao palco da peça The Man who was Thursday em “The Dial”, vol. XLV, n. 520, 16 de Agosto de 1908.

[8] Saint Thomas Aquinas, p. 27.

[9] Ibid.

[10] Ibid.

[11] Ibid, cap. VII.

[12] Ibid, p. 28.

[13] Ver Joshua Foa Dienstag, Pessimism: Philosophy, Ethic, Spirit (Princeton: Princeton University Press, 2009).

[14] Lauer, pp. 16-18.

[15] Lauer, p. 34.

[16] Citado em Lauer, p. 49.

[17] Citado em Lauer, p. 78.


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