Restaurante Canibal (1º Capítulo)

Publié par Maria Aguiar le

1º Capítulo de Restaurante Canibal

 



Em certos anoiteceres de Novembro, as luzes da ci­dade do Porto patinam à nossa volta, traçando no ar o esboço de uma árvore de Natal. De regresso a casa, Gustavo Malafaia guiava um Beetle, um carocha branco, na nova versão que a Volkswagen fez deste modelo. Eram seis e meia da tarde, e o Beetle planava como uma pomba pela Avenida da Boavista fora, rumo a ocidente. Mas antes de chegar à Foz, virou à direita, para a Rua São João de Brito. Foi então que tocou o telemóvel: ouviu­ ‐se um tilintar etéreo. Gustavo estacionou em dupla fila, já muito perto de casa. No ecrã lia­se «Susana», e o ros­to de Malafaia abriu as janelas todas num grande sorriso.
– Então, estás boa?
– Não, não estou nada boa, miúdo – Susana tratava­o por «miúdo» embora fossem da mesma idade.
– Acon­teceu uma coisa horrível. Nem imaginas. Estás em casa?
– Mas o que foi? – Não dá para contar pelo telefone. Preciso de falar contigo num lugar seguro. Estás em casa? 
– Estou a chegar.
– Em meia hora vou ter contigo.
De repente surgiu um lugar, mesmo diante do seu pré­dio. Gustavo estacionou numa guinada, com a voracidade de um cão que abocanha um osso. Ao sair do carro, houve um redemoinho de reflexos no vidro da janela da porta, e no centro desse cintilar viu­se o rosto do recém­ chegado: possuía uma pele dourada, e o cabelo era alourado, todo em ondas. Tinha uns grandes olhos azuis – e com frequên­ cia um sorriso enfeitiçava­lhe os lábios grossos. Na testa, do lado direito, avistava­se o gatafunho de uma cicatriz. Bom prédio, este em que mora: os mármores da ampla entrada dão ecos de palácio da justiça. Enquanto sobe no elevador para o sétimo andar, a meia altura e a magreza de Gustavo Malafaia reflectem‐se no espelho da cabina. Veste uns sapatos de vela, de camurça bege, umas calças de ganga e uma camisola de manga curta cor de laranja. Enfim, uma toalete de Verão em pleno mês de Novem­bro. De um modo geral, Malafaia emana aquele aspecto de adolescente eterno que distingue alguns homens de trinta e tal anos. Quando sai do ascensor, um saco que leva na mão em­ bate na porta que corre. É uma bolsa plástica do Pingo Doce, com bifes de novilho e um pacote amarelo de natas da Parmalat. Sempre que as coisas lhe correm mal, este homem faz o possível para que o mundo volte rapida­ mente a ser uma festa. Por isso, depois das amarguras da jornada, passou por um supermercado, resolvido a ofe­ recer a si mesmo, à hora do jantar, o seu prato preferido: um bife com natas. Ao abrir a porta do sétimo esquerdo, o embaraço das mãos com as chaves sublinha­lhe o cansaço. Gustavo en­tra na sala e deixa‐se cair no seu móvel preferido: um pouf vermelho que suspira profundamente ao acolher o corpo do nosso homem. Flutuando no seu estar sentado, recorda que, neste dia 2 de Novembro de 2010, uma terça­feira, fez bom tempo. E ao fim da tarde, quando o mundo pai­ rava nessa hora envernizada do cair da noite, uma hora em que as ruas e as praças se tornam constelações, dera­ ­se o solavanco do telefonema de Susana. O que teria acontecido? Com a aguarela de um sorriso, Malafaia lembrou­ ­se da amiga. Tinham­se conhecido há muitos anos na Escola Secundária António Nobre. Ela vestia toda de negro, esborrachando o chão com umas botas violentamente vermelhas. Susana equilibrava a alma a coleccionar piercings. Era a rainha das trevas da turma do 10º C, a vampi­resa, como lhe chamavam as meninas queques das Antas. E realmente, muito pálida, com sardas a revolucionarem­ ­lhe o rosto, o cabelo ruivo e uns olhos pretos evaporados em distracções tenebrosas, fazia pensar numa personagem de banda desenhada. Na realidade, Susana pertencia a uma família muito rica, os Cunha Guedes, proprietários da Veneziana, uma fábrica de massas e bolachas, um destes emblemas comerciais que nos derretem de nostalgia, como a Pasta Medicinal Couto ou os rebuçados do Dr. Bayard. Os pais possuíam um casarão na Avenida Marechal Gomes da Costa: ela era filha úni­ca – mas morava há anos num andar na Rua do Breyner, herdado, tentando pôr a parentela à distância. A amiga não gostava nada dos seus pergaminhos burgueses. Se alguém lhe falava nisso, assanhava­se toda, como se lhe tivessem dado um tiro com uma bala de prata benzida. Malafaia estudara informática sem se licenciar, pois ar­ranjara trabalho. Era um destes tipos a quem hão­de faltar eternamente três cadeiras para acabar o curso. Quanto a Susana, matriculara‐se em Filosofia, depois em Historia da Arte, isto antes de derivar para Estudos Portugueses. 
Não acabara nada do que tinha começado: agora estava a principiar estudos de Cinema na Universidade da Beira Interior. Ambos tinham aprendido línguas porque gos­ tavam de viajar, e um idioma sempre é metade de um mapa. Enfim, os dois envelheceram sem deixarem de ser adolescentes. Com os anos, ela simplificara a coreografia pessoal de piercings, pois o excesso de ferragens radicais, numa mu­ lher que entra na meia­idade, é tão ridículo como o dilúvio de anéis nas mãos gordinhas de uma senhora tradicional. A metalurgia que exibia no corpo reduzira‐se a dois brin­cos: uma estrelinha na asa direita do nariz, e uma caveira de prata na orelha esquerda. Pairando no pouf vermelho da sala, Malafaia lembrou‐se das conversas extravagantes da amiga, que ele ouvia sempre com um sorriso. Susana era destas pessoas que precisam de despejar a alma nos outros para se arrumarem a si mesmas. Gustavo ergueu­-se, sentindo nas pernas essa nuvem dos dias infelizes. Pegou no saco de plástico do Pingo Doce, encaminhou-­se para a cozinha. Pôs em cima da mesa a bandeja de esferovite onde vinham os bifes em­ balados, que dirigiam a Gustavo um sorriso vermelhusco. Ao lado colocou o pacote amarelo das natas. Quando uma pessoa sente a tristeza por perto, compra coisas a mais. Os quatro bifes chegavam para ele e para a amiga. Jantariam juntos. E foi então que notou em redor o frio da casa. Alugara o apartamento mobilado há três anos e tivera sempre com aquele espaço a mesma relação distraída que mantinha com os aeroportos. Tratava-­se de um andar pequeno, com um único quarto; neste, havia uma cama que era um con­ gelador: os lençóis estavam sempre frios, numa tempera­tura de gruta, e quando uma pessoa se deitava encolhia­se toda, numa bola de calor, derretendo devagar a neve do leito. Além da cama, avistava­-se um armário, cujas portas se abriam resmungando rangidos. Na sala, Gustavo instalara em cima da mesa a meada do seu equipamento informático: o ecrã, o teclado, a caixa do computador viam­-se envolvidos numa teia­ de ­aranha de cabos e acessórios. Depois havia um destes sofás de­ samparados, típicos das casas alugadas: o estampado era lilás. Felizmente tinha o pouf vermelho, localizado diante de uma frágil estante onde havia uma pequena televisão, muito velha, que irradiava imagens esborratadas. Mas a sala abria para uma varanda, e Gustavo amava esta breve prateleira de voos contemplados. Depois de um rápido instante de luta greco‐romana com a caixilha­ ria de alumínio, uma pessoa acedia àquele balcão e via, nos dias de Sol, um clarão metálico ao fundo: o Atlânti­co a contemplar­-se no céu. Distinguia-­se, ao lado esquer­do, o trânsito da Avenida da Boavista que, de noite, tinha um cintilar de fogo­ de ­artifício. Voltava­-se para dentro, e a casa de banho, forrada de azulejos vermelhos, era uma alucinação. Pelo contrário, na cozinha tudo luzia: frio, branco, cintilante. Como a amiga não vinha, Gustavo sentou­se diante do computador, que desatou a arfar tecnologias suaves. Dedicou‐se então à grande paixão dos seus dias: viajar. A Internet servia-­lhe para decidir destinos, calcular pre­ços, programar rotas. No fundo, tratava-­se de uma autên­tica carta de marear. Enquanto ainda há pouco voltava a casa com a alma amarrotada, parecera-­lhe que a melhor solução seria partir. Em anos anteriores, Malafaia fluíra por várias capitais europeias com uma mochila ao om­bro: rodearam­no espirais de pombas na veneziana Praça de São Marcos, em Florença sentiu a ternura do sol da Toscana, e Paris fora um belo caleidoscópio de cinzen­tos azulados.
Contudo, agora só havia orçamento para um giro por­tuguês. Estava interessado na Serra do Açor, no centro do país: um destes lugares esquecidos por toda a gente. Divagando pela rede, viu verdes montanhas, recantos encalhados em lagoas de silêncio. E de súbito surgiu­-lhe uma casa de turismo rural, perto de Arganil, cujas doces imagens lhe derreteram os olhos. Chamava­se Quinta do Pombal: era uma antiga vivenda campestre, feita em pedra meiga, de janelinhas tímidas, com as portadas de madeira pintadas de vermelho e alpendres rendados de verdura. A hera crescia pelas paredes, numa carícia na­ morada. Nas telhas, repousava um musgo filosófico. Ao fundo de um campo corria um regato, com a discrição dessas flores que se deixam entre as páginas de um livro. E ao alto de uma colina, não longe da casa, encontrava­ ­se a quadra popular de uma igreja românica. Gustavo registou no telemóvel o número do proprietário, que se chamava Emanuel Silva. Depois deixou‐se estar admirando a única imagem com que decorara as paredes da sala: uma fotografia de pombas tirada em Veneza. Lembrava­-se de caminhar por uma praceta, destas que o labirinto veneziano tem no seu croché de ruelas, pontes e canais. De repente, a felicidade vibrara-­lhe nas pernas de tal modo, que se pusera a cor­rer em direcção a umas pombas. Com um estalar de asas, fugiram em todas as direcções, e foi então que Gustavo disparou a câmara. Quando olhou para a imagem, não saberia dizer se captara as aves, ou se afinal tinha fotogra­ fado a própria alma. Sempre igual a si mesma, Susana nunca mais apare­cia: a meia hora que ela referira passara há muito. Eram nove e meia, e o escuro da noite arrefecera os vidros das portas de correr da varanda. Gustavo levantou­se, entrou na cozinha, abriu a bandeja dos bifes: afinal iria jantar só. 
Untou a frigideira com óleo, sentindo que os gestos se lhe sossegavam na serenidade daquela tarefa. No momento em que abria o pacote amarelo das natas, o andar estremeceu com o besouro da campainha. Mala­faia sorriu: atrasada como sempre, perdida no caos de si própria, ali estava Susana. No pequeno ecrã do atendedor, pôde espreitar o rosto da amiga: os olhos pretos eram o que mais assustava na face da recém-­chegada. E naquela noite pareciam mais dilatados do que nunca. Depois havia o cabelo ruivo, a pegar fogo à volta da cabeça.
– Abre depressa a porta, Gustavo. Sou eu. E ele, carregando num botão, abriu a entrada do pré­dio, e a seguir também a do apartamento. Ficou diante da solidão do patamar, enquanto o elevador sussurrava para baixo e depois para cima. Dali a pouco, as portas daquele mecanismo entreabriam­se, desdobrando um rumor de onda do mar pequenina: Susana saltou cá para fora.
– Onde é a casa de banho? – perguntou ela, precipitando­-se no apartamento e olhando em volta com a boca aberta, numa ansiedade de peixe fora da água. Gustavo encaminhou­-a para lá, e Susana atirou­se toda para a frente, desatando a vomitar na sanita com um tal impulso visce­ral, que o lanço das náuseas a obrigou a pôr­-se de joelhos. Só se via a cabeleira ruiva aos solavancos. Para se agar­rar com as mãos à louça da retrete, deixara cair no chão uma bolsa magenta. De resto, usava uma camisola larga e uma saia comprida, nos habituais tons nocturnos, e umas sapatilhas vermelhas, destas de jogador de basquetebol. Gustavo teve a impressão de que a amiga iria sumir pelo cano abaixo e ajoelhou também, segurando‐a pelas axilas. Susana pusera um perfume perigoso, Poison, o aroma por ela preferido. Aquele odor misturava­-se com o fedor do vomitado, enjoando o ambiente. E eis que Susana se endireitou, murmurando: 
– Foda-­se, miúdo. Devo ter vomitado até o meu es­queleto... Malafaia riu-se­.
– Já estás bem? – perguntou ele, enquanto ambos se sentavam no chão de mosaico. A amiga deixara tombar a cabeça para trás, num esgotamento pensativo. Olhava em volta, como que a voltar a situar-­se no mundo. – Ouve lá, Gustavo, quem escolheu estes azulejos ver­ melhos? São uma hemorragia de parolice... Ele não respondeu. O rosto amarrotava-­se-­lhe, com nojo daqueles cheiretes.
– Ouve lá, Susana: quando vieres vomitar a minha casa, ao menos não ponhas esse perfume. Ela agitava a cabeça, arrumando o cabelo ruivo. O ami­go erguia­-se e dava­-lhe a mão para a levantar, como fazem os futebolistas no terreno de jogo.
– Vamos sair daqui, senão vomito eu também – explicou ele. E Gustavo espreitava a retrete, de cara ladeada, antes de carregar com energia no botão do autoclismo. Susana pegou na bolsa vermelha e foram para a sala. Malafaia teve um gesto cavalheiresco, ceden­do à convalescente o pouf vermelho. Ela deixou‐se cair naquele assento, abrindo os braços e ficando a olhar para o tecto. Ele alapou no chão e encarou-­a, tão intrigado quanto divertido.
– Então? Mas Susana permanecia em silêncio. Continuava a fitar o tecto, e uma pessoa diria que as suas sardas meditavam. Gustavo virou a cabeça: parecia impossível, mas o chei­ro a vomitado infiltrara‐se na sala. Era um pivete ténue, uma borboleta de nojo que pousava levemente nas coisas. A amiga incorporara­-se no pouf e olhava para o chão: o seu rosto virara para a expressão aluada que assumia quando contava histórias. O brinco do nariz e a caveira da orelha refulgiam. Durante uns segundos, examinou a bolsa vermelha que tinha aos pés, como que a organizar as ideias. Depois, olhou para Gustavo e pôs­-se a falar.


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