Ventos e marés
Publié par Afonso Reis Cabral le
Ventos e marés
[Igreja S. Nicolau, Lisboa, 6 Novembro 2014]
Sabemo-lo bem, melhor ainda na voz de Camané – que bem gostaria de ter agora:
Sopram ventos adversos
Junto à praia que se quis
Há sentimentos dispersos
Que são barcos submersos
No mar do que se não diz
Os sentimentos dispersos com que somos confrontados todos os dias soam a fim dos tempos. Veja-se o horrendo e trágico episódio recente das decapitações pelos terroristas islâmicos. A carga simbólica daquele gesto parece-me terrivelmente explosiva. Em contraponto, só o pensamento e a escrita, no caso de António de Castro Caeiro, nos surgem como resposta capaz de neutralizar o potencial destrutivo do terror, da morte.
Reparem, a decapitação não é uma morte qualquer. É aquela que nos permite ver o instante da morte, o momento supostamente exacto em que aquilo que nos faz humanos – o fluxo do pensar – é interrompido. Quando a guilhotina surgiu como meio de punição máxima deu origem a um curioso debate científico sobre as cabeças pensantes: Quanto tempo duraria ainda o relâmpago de um pensamento. E que expressão dos sentidos do corpo acompanharia a cabeça na sua queda, o ódio, a dor?
Os terroristas islâmicos com as suas decapitações amplificadas pelo poder dos média não procuram apenas insuflar e difundir a nuvem negra do medo. Um homem mascarado, um anónimo – que significa somos muitos –, corta a cabeça de um individuo, um nome concreto, um rosto. O outro só existe como instrumento subjugado da minha vontade. Tal afirmação tenta anunciar o caos mais negro ao dizer: a faca cega da religião é mais forte do que o fogo da razão.
O tempo e a morte, o corpo e o outro, além da potência contida no acto e verbo VER, eis alguns dos temas de «São Paulo – Apocalipse e Conversão». E, contas feitas, que nisto está o ganho deste trabalho a partir do severo estudioso S. Paulo, quando a razão se ausenta da religião esta deixa de o ser, desliga-se. «O Espírito é compreensão.»
Estas reflexões de António de Castro Caeiro não são apenas isso:
mergulham eruditas e profundas raízes na longa e luminosa tradição da filosofia, sobretudo, ocidental;
dialogam com a exegese mais rigorosa em busca dos múltiplos sentidos que se escondem no texto, na frase, em cada palavra;
mas resultam em um pensamento que continua a procurar, se não responder, pelo menos compreender melhor algumas das mais antigas inquietações humanas. E nisto pode revelar-se de extrema utilidade para as nossas vidas: mais fogo que faca.
Mas continuemos por partes, ainda que não correspondam ao índice.
A figura histórica de São Paulo surge aqui apenas em esboço, sendo os traços mais a grosso aqueles que interessam à empresa do ensaísta. O momento da conversão, em que Saulo morre para nascer Paulo. Em que o sentido do seu caminho, na estrada, muda. Ele cega, mas para passar a ver.
Em vários momentos, ao longo desta leitura, as bússolas enlouquecem. Curiosamente, ou não, muito do labor deste livro reside em procurar apurar os sentidos, o dos conteúdos de cada palavra, de cada conceito; mas também dos cinco sentidos através dos quais o corpo se relaciona com o mundo, e aqui a visão parece ser o mais produtivo, aquele que nos leva mais longe; sem esquecer a conversão, ou seja, a mudança de sentido, se traçarmos a genealogia da palavra. E cito:
«O substantivo «conversão» quer dizer mudança de direcção ou de orientação. O seu sentido é tanto espacial e temporal como qualitativo. Por exemplo: «virar do avesso», «de pernas para o ar», «para o interior», «de dentro para fora», etc., etc.. O infinitivo converter-se quer dizer «virar-se de um sítio para outro», «comutar direcções». Mas que palavra é traduzida por «arrependimento»? O convite não é para ver o que não está dado a ver. É um convite para ver o que está dado à luz de um sentido totalmente diferente. E uma intimação para que se produza uma alteração absolutamente radical no nosso modo de ser. Para que tal aconteça temos de ficar completamente transtornados. O transtorno exige compreensão.»
Saulo, o estudioso sério, homem de leis e minúcias, passou a ser o portador da palavra, de uma Palavra que não é a sua, de um projecto de loucura e escândalo, que desobedece às leis. Paulo é a crise, como nós hoje somos e doravante seremos a crise. Ou não vivessemos o apocalipse, agora. Paulo interessa mais ainda por ser alguém que vive sob o signo do tormento. E pouco mais saberemos aqui de Paulo ou Saulo, do ponto de vista biográfico. O terreno que pisamos é o da palavra.
E essa diz do projecto cristão, resumido assim no final do livro, mas garanto-vos que não páginas dispensáveis as que precisamos percorrer para lá chegar:
«A cada dia estou a morrer. A cada hora estou a morrer. O eu não morre. Nem os mais diversos eus que eu sou. Nem eu que toda a gente tem, de quem se diz que cada um é como cada qual. Nenhum ego morre, porque nenhum ego é outra coisa senão uma ficção, uma ideia que configura, mais de que um gesto e uma expressão: eu a ir onde tenho de ir com um carácter de maior ou menor urgência, eu tenho de ir a… para…: tenho de ir lá, tenho sempre de ir a um sítio, que não é aqui, ou onde estou, porque sempre num outro tempo que não este. Tenho de ir ao banco para tratar de um assunto que só lá pode ser tratado, tenho de ir aos correios para tratar de assuntos que só lá podem ser tratados, tenho de ir ao médico, tenho de ir à agência de viagens, tenho de ir. Em cada gesto: descer escadas, apanhar meios de transporte, conduzir carros, ir a edifícios, exprime-se o que se tem de fazer quer eu queira quer não. Mas a nossa agenda não é apenas pragmática: que resolve assuntos ou os deixa por tratar. Que não consegue ou dá conta do recado. Há agendas mais e mais específicas na nossa vida, mais e mais íntimas e paradoxalmente mais e mais gerais e universais. Temos uma relação com o algo como um preenchimento. O que quer que isso queira dizer sabemo-lo ao nosso modo. Não é objectivável. Os projectos são tantos quantas as pessoas. Que eu não corra e não tenha começado a correr em vão!
E eis a agenda cristã, aqueles dois conhecidos e esquecidos mandamentos essenciais segundo S. Paulo, na sequência, é claro do encontro com Cristo: «ama o Teu Deus com toda a tua alma, todo o teu pensamento. Ama o próximo como a ti mesmo.»
«Na equação simples da vida, há duas possibilidades: expressar ou não a relação com essa exortação. Não amares o Teu Deus não faz que ele deixe de ser, faz que tu nunca foste. Não amares o próximo, implica que nunca te amaste a ti próprio. Não te amares significa que foste possível mas nunca exististe. A outra possibilidade diz ao amares tu és e és na verdade da única forma possível, dadas as circunstâncias.»
Além do assunto, podemos aqui experimentar, descontada a leitura apressada, um perfume do estilo.
Frases curtas que escavam por camadas, que relevam do caos a forma: o conceito que se oculta na palavra vai sendo esculpido pelo gesto de escultor. O António escreve como quem esculpe, por golpes, rasgando da pedra significados que depois desenvolve e estende em tapeçaria. O que começa por ser frase logo ganha o peso de versículo, quando não a leveza do verso.
Possui ritmo encantatório em espiral, coisa de dançarino, ou das artes marciais, repetindo mais adiante mas acrescentando um algo mais que transporta a ideia ao seu fulcro.
Não lhe conheço poemas, mas será por timidez. Só um poeta traduz da maneira que o António sabe. Diz ele, no capítulo dedicado à condição humana, a da Servidão.
«A vida não é datada por certidões de nascimento nem de óbito. Estica-se até aos confins dos tempos. Existe entre o que foi e o que terá sido. Ela é este lapso de tempo que jorra da promessa da eternidade. O seu vislumbre pode durar um piscar de olhos. Mas é desse encontro fulminante que uma vida inteira pode viver. Cada um de nós é susceptível de comungar desta totalidade infinita, de uma forma concreta, em que as alegrias e os sofrimentos dos outros, passados, presentes e futuros, nos tocam e acontecem. Cada um de nós pode ser esse horizonte aí que se sente na vida com os outros aos quais nos ligam laços íntimos e estreitos ou uma ligação vaga e até mesmo aparentemente inexistente. Os outros são, contudo, a possibilidade de os encontrarmos, de por eles aguardarmos a vinda. Mas também os que «ficam» depois da sua partida, numa eterna despedida.»
Cruza aqui de novo outro e o tempo, em uma das suas mais belas ideias: somos únicos, mas não somos sós, estamos presos ao barro que foi moldando as várias gerações, o homem por inteiro. É um emaranhado transversal, um nó, uma rede, que não se limita à família, antes se alarga às afinidades electivas e todas as outras que vão do afecto à vocação, às mais dramáticas e íntimas interpelações, à provocação. Aprender com o coração que somos todos sem excepção desta terra, feitos deste barro do humano, será talvez do mais revolucionário no cristianismo. A leitura de Paulo – obra e palavras – anuncia isso mesmo, que cumpriremos o tempo por inteiro vencendo a morte se nos cumprirmos como projecto.
«Esta metamorfose da vida explode-a para fora dos seus limites estanques. A vida metamorfoseada passa a ser configurada pelo lapso de tempo que dura um piscar de olhos. Durante esse instante, cada um e cada qual é susceptível de comungar desta totalidade infinita, de uma forma concreta. Nela estão contidas todas as alegrias e os sofrimentos dos outros, passados, presentes e futuros. Cada um de nós pode existir nesse horizonte, onde o mundo e os outros se encontram.»
Será também nesse momento apocalíptico que veremos as coisas e não apenas as suas imagens:
«A diferença que se apura é entre ver as coisas diretamente, em carne e osso, ao vivo, cara a cara, e, por outro lado, vê-las apenas reflectidas num espelho. Portanto, não elas mesmas. Apenas, as suas imagens. Vêm-se os reflexos das coisas e não as próprias coisas, que são a fonte da reflexão.»
As imagens com que gastamos os nossos olhos são, pois, fragmentos. Muitas são as expressões que nestas páginas se encontram relacionadas com o ver: golpe de vista, abrir e fechar de olhos, tensão do olhar, o olhar do outro que se abre… Ou belas expressões como: «somos postos a ser pelo olhar do outro neste mundo». Mas curiosamente são as palavras o pano de fundo, o cenário maior desta busca de sentido, este trabalho de compreender não as palavras, que de um certo modo nos levariam ao lugar onde estão escondidos os seus múltiplos e prementes sentidos, o coração, mas porque elas próprias se revelam a superfície do mundo, como a pele é a superfície dos nossos corpos.
É pela palavra que António de Castro Caeiro nos leva ao encontro do outro, também de Paulo, e da sua mensagem radical. Há uma fluidez líquida na sua interpretação que parece desenhar um oceano, mas talvez de fogo, no qual nos possamos vir a reencontrar: «tudo é futuro por ser».
O Paulo histórico regressa no epílogo, por força poética do António, à mais ocidental das nossas praias ao encontro do pôr-do-sol. Para pôr um final que são dois pontos.
E volto a ouvir Camané:
O dia nunca alcançado
Morre em todas as marés
E é sempre dia acabado
Junto ao sargaço espalhado
De tudo o que se não fez
No caso, alguma coisa se fez.
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