Egéria (Introdução)
Publié par Hugo Neves le
INTRODUÇÃO
A Antiguidade Tardia caracteriza‑se pelo aumento das deslocações ao Oriente. A Ásia Menor, a Síria, o Egipto e a Palestina exerciam grande fascínio sobre os povos latinos empobrecidos ou arruinados pela política imperial; a capital do Império é transferida de Roma para Constantinopla, e o Oriente vê aumentar a sua influência sobre o Ocidente. É neste contexto de alterações políticas, trocas comerciais, iniciações artísticas e intensa comunicação intelectual que surgem, de forma acentuada, as peregrinações. Conhecem‑se inúmeras viagens de visitantes que, animados de motivação religiosa, demandavam os locais que a tradição definia como santos – deslocavam‑se especialmente para a Palestina. São estes peregrinos que, no século IV, marcam o início da verdadeira história das peregrinações e testemunham o progressivo mas incisivo enraizamento do Cristianismo.
Afluem à Terra Santa peregrinos vindos de zonas
remotas, quer do Ocidente – da Hispânia, de França, de Itália, do norte de África –, quer ainda de regiões a oriente do império: a Pérsia, a Arménia, a Geórgia ...
Díspares quanto à naturalidade, eram‑no também pela intensidade da sua devoção e pelo estatuto que ocupavam socialmente no seu país. A grande maioria eram monges, mas também clérigos (especialmente bispos) que procuravam com a viagem prestar testemunho da sua devoção e enriquecer espiritualmente pelo contacto tangível com os vestígios da sua fé; homens e mulheres que acediam a suportar as dificuldades que um percurso mais ou menos extenso representava numa época de profundas transformações. Como disse S. Jerónimo: Vox quidem dissone sed una religio (Epist., 46, 10).
De entre este grupo destacamos as mulheres, particularmente as de alta sociedade, que em número significativo empreenderam peregrinações ao Oriente, no final do século IV – com efeito o ano 326 marca o momento de grande impulsão do fenómeno das peregrinações, principalmente iniciadas no Ocidente, com a manifestação oficial da piedade da imperatriz Santa Helena. Conhecem‑se várias damas: Melânia‑a‑Velha (em 373), viúva de um prefeito de Roma; Paula, de uma nobre e antiga família romana, e Eustóquio (em 385); Poeménia, parente de Teodósio (em 390); a patrícia Fabíola (em 394‑395); a viúva e a filha de Rufino (em 396); ... e Egéria.
A monja fez a sua viagem ad loca sancta em 381‑384, mas teve a particularidade de nos deixar o relato detalhado das suas impressões (e também uma descrição pormenorizada da liturgia de Jerusalém), registo que apesar de incompleto chegou até nós. É aliás o segundo testemunho escrito de uma peregrinação ao Oriente (a primeira é de um peregrino de Bordéus que fez a sua viagem cerca de 50 anos antes) e o primeiro que se conhece redigido por uma mulher.
As viagens na época implicavam dificuldades acrescidas, pela pouca comodidade, pela insegurança, pela lentidão dos meios de transporte – de tal forma que Gregório de Nissa () nos revela que «Uma mulher não pode empreender uma viagem tão longa sem ter com ela alguém para a proteger; a debilidade natural do seu sexo exige que a ajudem a subir para a sua montada, que a ajudem a descer. É preciso necessariamente que a amparem nos percursos difíceis. Quer se trate de um amigo ou de um mercenário que lhe preste os seus serviços, ela não conseguirá evitar a censura; e se se entregar ao estrangeiro ou ao servidor, ela violará as leis de castidade». Egéria, porém, não se deixou demover.
O Itinerarium Egeriae é, pois, um texto único. Único pela forma como nos elucida relativamente a aspectos culturais e sociais da época; único pela maneira como nos dá a conhecer as práticas rituais de uma igreja que estenderá a sua influência a toda a Cristandade; e único, também, pelo que nos revela da personalidade singular que intenta transmitir as suas experiências a outras mulheres para quem endossa a sua relação de viagem.
Considerada por muitos como originária da província Galécia, que à data compreendia o conuentus de Bracara e tinha esta cidade como capital de província, Egéria recorre a usos linguísticos que se podem entender como particularidades da região noroeste da Península e socorre‑se de um estilo, condicionado pela vontade de transmitir tudo o que vê e encontra, que acusa uma tendência para a espontaneidade e é hoje considerado um dos testemunhos mais importantes do latim vulgar.
Esta monja, que se auto‑define como satis curiosa, surge‑nos ainda tão mais singular se recordarmos, como curiosidade, que as peregrinações de mulheres famosas portuguesas, não necessariamente monjas, remontam, que se saiba, ao final do século XI, com as viagens de D. Sancha, filha de D. Urraca, «a qual amando a virgindade nunca quis casar. E foyse a Iherusalem em romaria» (P.M.H., Scriptores, t. 1, p. 25), cidade onde serviu os pobres no hospital do templo durante oito anos.
O texto do Itinerarium depende de um único manuscrito da tradição, o Aretinus 405, descoberto nos finais do séc. XIX. Embora sejam respeitáveis as várias edições vindas a público, não têm sido pequenas as hesitações dos diferentes editores. Pelas razões enunciadas em lugar apropriado, a edição que agora damos a público beneficia de recuperação de algumas lições feita pelo Prof. Aires A. Nascimento, que orientou a nossa própria investigação (as edições mais respeitáveis são indicadas na bibliografia). A tradução procura estar atenta ao registo discursivo egeriano e respeitá‑lo.
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