As Palavras do Punk (1.º cap)

Publié par Hugo Neves le

1. O punk e a possibilidade da sua sociologia

 

O punk é uma forma musical. Se a palavra já era usada, na gíria norte-americana, para designar certos grupos de jovens situados na base da estrutura social (Laing, 1987: 124), só ganhou reconhecimento quando aplicada à música, sobretudo com a publicação da revista Punk Magazine em 1976 (O’Hara, 1999). Como forma musical, o punk entronca no grande universo do rock and roll, emergindo mediaticamente na segunda metade dos anos de 1970, simultaneamente na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Ali, protagonizada pelos Sex Pistols, cujo disco Never mind the bollocks, here’s the Sex Pistols, lançado em 1977, constituirá o marco fundador de uma nova linguagem e atitude musical. Aqui, protagonizada pelos Ramones que, com o álbum homónimo de 1976, seguiam a via aberta por bandas como os New York Dolls, os Stooges, os MC5, The Velvet Underground, Richard Hell and the Voidoids, The Dictators ou Television, que fervilhavam no circuito underground nova-iorquino desde o final dos anos 60. Como aconteceu com outras formas do rock, o punk internacionalizou-se muito rapidamente, influenciando os modos de fazer, distribuir e consumir música um pouco por todo o mundo. 

Contribuíram para potenciar esta influência, entre outras caraterísticas de forma musical, três fundamentais. Primeiro, o punk representou uma inovação, isto é, a frescura de uma forma instituinte, numa altura em que o rock dos anos 60 e 70 se encontrava num processo de institucionalização particularmente vincado, incorporado pela grande indústria discográfica e aceite, quando não já consagrado, por várias instâncias de legitimação cultural (afinal, a Rainha já havia feito condecorado os Beatles em 1965). O punk afirmou-se exatamente como dissidência face a essa lógica de cooptação, retomando certos traços fundadores da chamada contracultura (Laing, 1987). Segundo, o punk descreve-se a si próprio como a música que não requer nenhuma espécie de conhecimento e perícia, a linguagem disponível para aqueles cuja pulsão expressiva não pode ser bloqueada pela ignorância técnica, uma música que não é, sabe que não é e não quer ser música, no sentido de uma gramática técnica e estética só acessível por via de conhecimento, formação e qualificação específicas (Bennett, 2001). Terceiro, e correlativamente, sendo a música que qualquer um/a pode fazer, “saiba” ou não “saiba”, o processo de realização do punk está disponível para todos, podendo qualquer um/a encarregar-se das melodias, das letras, dos instrumentos, das gravações, dos concertos, da distribuição, da apreciação e do consumo. A lógica do “faz por ti próprio”, cuja sigla inglesa, DIY – “do it yourself” – será a mais clara e imediata identificação do punk, leva ao limite o tipo de percurso que o rock e as bandas de garagem já haviam proposto, desde os anos 1960, fazendo dele a sua bandeira (McKay, 1998).

O punk é um movimento cultural. Inscreve-se na dinâmica de que são portadoras, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, sucessivas gerações de jovens europeus e norte-americanos, que vivem e interpretam os grandes processos históricos da escolarização de massas, do desenvolvimento da produção e do consumo de massas, da emergência dos meios de comunicação de massas e das indústrias culturais, do crescendo das funções de marketing, publicidade e moda na geração do valor económico, do Estado de bem-estar, da polarização ideológica e político-militar em blocos antagónicos e dos desafios à ordem ocidental colocados pela descolonização, o anti-imperialismo e a Guerra Fria. Partilha com outros movimentos culturais a matriz musical, a referência ao universo do lazer, da convivialidade e da sociabilidade entre pares, a reinterpretação por esta via das pertenças e das questões do trabalho, das classes trabalhadoras e das cidades industriais, o enquadramento urbano, a marca adolescente e juvenil, e a centralidade do estilo de vida para a produção e a expressão de identidades pessoais e de grupo (Marcus, 2000; Cogan, 2010).

Dentro destas grandes afinidades estruturais, o punk definir-se-á a si próprio como uma forma e um movimento cultural específico. Muitas vezes se recorrerá, no seu seio, ao uso da palavra subcultura, jogando até com a sua ambivalência no vocabulário sociológico: quer se invoca a subcultura do punk para marcar a diferença face a outras grandes correntes das culturas juvenis, quer para contrapô-la, enquanto forma dominada ou subalterna, às formas e instituições culturais hegemónicas. De qualquer modo, a diferença punk radica, desde os primeiros concertos e discos dos Ramones e Sex Pistols, numa combinação de traços como os seguintes: o posicionamento à margem ou no “subterrâneo” (underground) do que for apercebido como um sistema instituído, qualquer que seja a sua esfera de influência, da política à economia, da sociedade à música; o desafio permanente e irremissível a esse sistema, numa lógica de permanente questionamento e desconstrução de qualquer expressão, símbolo ou convenção, por mais naturalizada que pareça; a busca de uma coerência pessoal, quer baseada na articulação entre o que se é, o que se diz, o que se veste e o que se faz, quer baseada na realização prática dos princípios defendidos, designadamente na maneira como se vive a música (Hebdige, 1979; Marcus, 2000). Tudo isto parece consubstancial ao punk, desde o seu início, e constitui o critério principal e mais frequentemente usado para demarcá-lo e opô-lo a outras subculturas, dominantes ou contestatárias, estabelecidas ou emergentes. O punk distingue-se dos outros – incluindo dos rockers – por ser underground, por ser radical na interpelação e por elevar o “do it yourself” ao estatuto de uma ética pessoal e de uma moral de grupo.

O punk é uma cena. A palavra imprime um colorido próprio à estrutura que em cada caso liga os diferentes protagonistas: as bandas, as editoras, os promotores, os críticos, os divulgadores, os consumidores, os fãs; e os recursos e meios de que dispõem, como os discos e outros registos fonográficos, os concertos e outros eventos, os bares, caves, salas e outros espaços de exibição e encontro, os jornais, boletins e fanzines, as lojas de roupas, acessórios e discos, as ruas e bairros, as plataformas físicas e digitais… Esta estrutura tem uma espacialidade e uma territorialidade, inscreve-se num meio social (físico ou, mais recentemente, virtual), que ela recria e usa como uma dimensão constitutiva, potenciando economias de aglomeração e escala. De todos os elementos estruturantes dão bem conta conceitos sociológicos como o de campo ou de mundo da arte. A vantagem da qualificação como cena está na ênfase que coloca, como eixo do campo, na partilha de um estilo de vida. Estilo de vida (por contraposição e complemento a modo de vida) identifica formas de estruturação social a partir das práticas e hábitos de consumo e lazer. E esse é um ponto distintivo das cenas musicais contemporâneas: a estrutura das relações sociais constituídas em torno de trajetos, posições e papéis é por assim dizer irrigada por padrões de comportamento no espaço público e semipúblico que tendem a ser identitários, no duplo sentido em que fazem a unidade de um grupo (ou “tribo”) e o distinguem dos demais (Straw, 1991; Shank, 1994; Bennett, 2004). A cena punk compreende, pois, produção e comercialização, consumo e lazer musical; maneiras de ser, apresentar-se e agir; valores e atitudes emblemáticas; formas de viver e ocupar o espaço urbano e o tempo da sociabilidade, o mundo pós-laboral e pós-escolar da noite ou do fim-de-semana, de refazer e apresentar os corpos, vestir-se, adornar-se e mostrar, andar sozinho, em pares ou em grupos, exprimir-se e comunicar. É uma espécie de caldo cultural em que os protagonistas se sentem imersos – e tratam de apropriar e transformar, muitas vezes operando novos cortes, novos alinhamentos, novos microclimas e assim constituindo outras cenas, ou subcenas…

Cultura, cena, forma musical: o punk é isto, desde os seus primórdios. Como, antes, durante e depois dele, outras dinâmicas o foram e são. O ponto é que as dimensões estão articuladas. A estrutura melódica rudimentar, a sonoridade agressiva, a intensidade e a rapidez da canção, o impacto da percussão, as palavras que se gritam mais do que se cantam, a ocupação performativa do palco, as cores fortes, as incisões e pinturas dos corpos, os adereços metálicos, os símbolos que conotam dureza, masculinidade ou rebeldia, o teor cru e provocatório das letras, os ambientes e horas de encontro, tudo isso se conjuga numa ética e numa estética que dialogam entre si (cf. Castelo-Branco, 2010). Como veremos, os membros desta cultura usam, muitas vezes, para sugerir esta ligação totalizante, expressões fortes como “filosofia” ou “modo de ser”. Eles geram os seus emblemas, os seus ícones, os seus rituais. Identificam e cultivam uma aura. Convocam e codificam uma história, com mitos fundadores, heróis e proscritos, acontecimentos, linhagens e ruturas. 

E, como é habitual, a narrativa combina acasos e predestinações, ortodoxias e dissidências, coisas que foram novas e envelheceram, coisas que estavam perdidas e foram recuperadas, memórias, saberes e emoções, numa constante elaboração e reelaboração, intertextualidade e interpretação (Bennett, 2013). Os Sex Pistols ridicularizaram o próprio hino britânico, em 1977, com God save the Queen. Brilharam no universo do rock entre 1975 e 1978, para logo desaparecerem. Sid Vicious, o seu ícone verdadeiramente punk, morreu muito novo, em 1979. Os Ramones mantiveram-se unidos até 1996 mas com muitas mudanças na formação. The Clash traziam uma tonalidade mais política, sendo London calling o seu álbum bandeira. Patti Smith, com uma conotação mais intelectual e literária, distinguiu-se no seu disco de estreia, Horses, de 1975 como a poetisa do punk. Vivienne Westwood, a primeira mulher de Malcolm McLaren, definiu o estilo punk dentro das portas das suas lojas londrinas: Let it Rock (1972), Too Fast to Live (1973) e Sex (1974). Foi particularmente nesta última que criou roupas com citações sadomasoquistas e slogans situacionistas, feitas de couro, t-shirts rasgadas (catalyst-shirts) e acessórios feitos de correntes e cadeados (Colegrave & Sullivan, 2002), rodeada de uma corte de jovens em ebulição que, sem o saberem, já eram punks (Savage, 2002). 

No ciclo político dos anos 80, com Margareth Thatcher em Downing Street e Ronald Reagan na Casa Branca, o punk foi muitas vezes visto como a expressão musical da resistência ao neoliberalismo. Já o surgimento se havia situado em relação com as várias ondas de choque da crise petrolífera de 1973 e com o declínio da indústria britânica e o aumento do desemprego (Paraire, 1992). Esse entendimento da música como recurso para a resistência social marcará a subcultura (Hebdige, 1979).

Como é caraterístico dos movimentos culturais, a linguagem (como é que falamos), a simbolização (que signos reenviam para outros signos) e a narrativa (o que fizemos e fazemos, o que nos aconteceu e acontece, o que se passa) constituem, eles próprios, ensejos de construção e de luta social. Punk ou pós-punk, proto-punk ou punk new wave? Quando nasceu o punk? Já se foi? Está vivo? Caiu em coma e depois recuperou? O punk de hoje é igual ao primordial? E qual é o primordial? Há punks nacionais, ou só cenas nacionais de um mesmo punk, internacional? Quem é punk? Quem pode definir o que é punk e classificar os punks? Quem está autorizado a ser, ou é reconhecido como intérprete legítimo do punk? As questões são quase infindáveis, mas todas remetem para o mesmo facto: o nome da cultura e os nomes dos cultores estão entre os mais formidáveis codificadores do campo e do sistema de pertenças e de poderes que lhe vem associado.

Isto tem, evidentemente, implicações na análise sociológica, porque ela própria faz parte, ou pode ser usada como parte deste jogo. O esquema que provavelmente acolheria a aceitação de sociólogos distanciados do campo – o esquema que, no grande universo rock do último quartel do século XX e do que já decorreu até agora do século XXI, poderia distinguir uma grande corrente comercial de pop, uma corrente mainstream de rock, o rock dito alternativo ou independente, o punk, o heavy metal, o hip hop e as músicas eletrónicas – esse esquema também muito provavelmente despertará as mais acesas discussões e as mais radicais desqualificações no interior das cenas musicais.

A sociologia, que, como tal, é agnóstica nestes pontos, o que tem a fazer é incorporar todas as movimentações no seu próprio objeto de estudo. Se não há uma essência do punk, se não houve ainda tempo para formar um cânone e se muito menos há uma qualquer definição jurídico-administrativa, então é punk o que faz sentido como punk para os atores de qualquer forma relacionados ou envolvidos com o (que consideram ser) punk.

Este é, pelo menos, o ponto de partida da nossa aproximação sociológica ao “punk português”. 


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