Auto-de-Fé (1.º capítulo)

Publié par Alexandra Louro le


DA FÉ NO GALILEU 
À FÉ DE GALILEU


Senhor padre Gonçalo Portocarrero de Almada, o papa Bento XVI declarou que, a partir de 11 de Outubro de 2012 até 24 de Novembro de 2013, a Igreja celebra o Ano da Fé. Certamente que esta preocupação do papa não é casual e tem particular acutilância no continente europeu. É uma evidência que, na Europa, a fé escasseia e que essa tem sido uma das preocupações do papa; podemos mesmo dizer que não só a fé escasseia como os cristãos diminuem na sua prática religiosa e também na sua fé. A Europa recusa mesmo a herança cristã europeia, apesar de a marca judaico-cristã da raiz deste continente ser inegável. Será esse reencontro um objectivo do papa ao convocar um Ano da Fé?

Sim, acho que o papa, logo desde o início do seu pontificado, deu a entender muito claramente que, em vez de se ocupar com questões que terão a sua importância mas que não são fundamentais, quer chamar a nossa atenção para aquilo que é essencial. E, por isso mesmo, a primeira das suas encíclicas é sobre a caridade (Deus caritas est, 2005) depois escreveu também sobre a esperança (Spe Salvi, 2007) e agora chamou a nossa atenção para a fé. Há uma intervenção muito interessante do papa Bento XVI, em Santiago de Compostela, na qual, em resposta à pergunta sobre a grande contribuição que a Igreja tem para dar ao mundo e em especial à Europa, o papa disse: «Deus». Aquilo que a Igreja tem que dar a conhecer, aquilo que a Igreja tem a manifestar, aquilo que a Igreja tem que dizer, aquilo que a Igreja tem de próprio e que deve transmitir é Deus. A fé é exactamente isso, a fé é o conhecimento de Deus, é o conhecimento de Deus tal como Deus quis que nós o conhecêssemos, através do seu filho, Jesus Cristo.


No documento sobre a fé, Bento XVI sublinha a necessidade de uma nova evangelização para com os baptizados que deixaram de ir à Igreja. Em Portugal é um fenómeno frequente e significativo. Restam poucos baptizados que sigam as práticas tradicionais da Igreja e quase diria que tudo se reduz a três momentos: baptizado, casamento e funeral. 
O papa considera esses baptizados uma prioridade. Porquê? 

É necessário que todos os cristãos tenham consciência de que ser cristão é estar comprometido – e estar comprometido com um projecto concreto. Não apenas com uma ideologia, não apenas com uma determinada visão do mundo, porque há pessoas que têm essa noção, que ter fé é como se alguém dissesse «eu subscrevo esta teoria, eu aceito esta interpretação ou esta cosmovisão». A fé não é isso.


Então o que é a fé?

A fé é isso, mas é muito mais do que isso. Não é alguma coisa, mas alguém: Cristo. É aceitar a sua revelação, mas é aceitar também o compromisso que essa revelação implica para cada um de nós. E que exige, de facto, uma entrega total. Jesus Cristo não procurava apenas, por assim dizer, a adesão intelectual, não procurava apenas pessoas que aceitassem os seus postulados, os seus axiomas, mas pessoas que se comprometessem com a sua vida a realizar aquele programa, que Ele trazia para elas, mas também para o mundo inteiro. E, portanto, ser cristão é ser isso, é ser uma pessoa comprometida com Cristo, na Igreja, para realizar aquilo que Ele veio trazer ao mundo: a salvação dos homens. A fé é exactamente a explicação desse projecto, e a realização dessa missão.
De resto, Jesus Cristo não teve a preocupação de ter muitos discípulos, mas antes a preocupação de que os discípulos que de facto eram seus estivessem bem formados. Se calhar nós gostaríamos que a Igreja tivesse milhões e milhões de fiéis. Sem dúvida alguma que é essa a finalidade, porque em última análise a Igreja é universal, católica, está aberta a todos os homens e não faz qualquer tipo de acepção (Act 10,34) e a todos tem algo importantíssimo, fundamental, a oferecer, que é a salvação. Mas não devemos ceder à tentação do número, em detrimento da qualidade, em prejuízo da autenticidade da própria fé. Mais valem poucos cristãos, mas cristãos decididos, comprometidos, coerentes, que estejam efectivamente disponíveis para realizar a missão da Igreja, do que uma multidão de cristãos apáticos, de cristãos descomprometidos, de cristãos que até, algumas vezes, se permitem a incoerência de destoar, ou de estar em menos sintonia com a hierarquia da Igreja ou com o seu magistério.


No entanto, olhando para a Europa, e Portugal não é excepção, verificamos que a Igreja perdeu as elites. Até determinada época da história europeia, as elites intelectuais eram fundamentalmente católicas. À Igreja se devem as universidades, as bibliotecas, a cópia e difusão dos grandes clássicos da literatura da humanidade. Os Beneditinos e os Dominicanos fizeram dos seus mosteiros centros difusores de cultura, e os Jesuí­tas, por exemplo, tiveram um papel fundamental na alfabetização dos povos por onde passaram. A ciên­cia e a investigação científica, motores do progresso do mundo ocidental, à Igreja o devem. Mas, simultaneamente, fica-se com a sensação de que a evolução da ciência teve como consequência o recuo da fé. É fácil constatar que a fé começa onde a ciência acaba, ou melhor ainda, para ser mais abrangente, dizer que a fé começa onde a razão acaba. Só existe fé onde a razão não consegue chegar e essa é a marca do nosso tempo. Pode-se mesmo afirmar que tal se verifica desde a Revolução Francesa, e ciência e razão ocupam o espaço fundamental fazendo recuar a fé. Concorda com esta evidência?

Não. Não sei se foi a Igreja que perdeu as elites ou se foram as elites que perderam a Igreja… Creio que será mais isso, ou seja, as elites precisam mais da Igreja do que a Igreja precisa das elites. Também por isso, de facto, Nosso Senhor não procurou, por assim dizer, conquistar as elites. Os seus discípulos, os seus seguidores eram quase todos gente muito normal.


São Paulo, nem por isso...

São Paulo, não – São Paulo era, de facto, um caso extraordinário.


Mas, senhor padre, São Paulo pertencia à elite da época dele.

São Paulo era da elite, era de facto um líder, era um chefe, tinha um carisma muito especial. 
Mas, na verdade, não diria que é só a partir de agora que tal acontece. Suponho que a partir da Revolução Francesa (ou, pelo menos, mais acentuadamente aqui, em Portugal, com o liberalismo) há sem dúvida um divórcio entre a cultura e a fé, um divórcio entre a ciência e a fé. Depois, o positivismo veio legitimar essa emancipação, que de algum modo era vista como salutar para o próprio pensamento, porque – dizia-se – um pensamento que não está enfeudado a uma religião é um pensamento livre, é um pensamento sem preconceitos, é um pensamento mais corajoso, mais audaz e até, do ponto de vista da técnica, pode ir mais longe. 
Muitas vezes a religião, concretamente a religião católica, é vista como uma espécie de freio, um travão para o espírito humano. Mas acho que o positivismo já está ultrapassado, já está antiquado. Hoje, cada vez nos damos mais conta de que, se o espírito humano e a inteligência humana não estão abertos à transcendência da fé, acabam por se perder, acabam por se desvirtuar e até por se voltar contra o próprio homem. De facto, o papa tem muitas vezes insistido neste aspecto de que a fé sem a razão torna-se fanatismo e a razão sem a fé perde a transcendência. A razão sem a fé fica diminuída, fica menos capacitada. Uma razão sem fé, no fim de contas, é como percorrer um labirinto. Pode-se correr muito, pode-se dar muitas voltas, mas nunca se sai do mesmo plano. E esse plano não é capaz de nos dar as respostas às perguntas que todos os homens fazem.
A ciência é um conhecimento estupendo, magnífico, que a Igreja, desde o princípio, tem fomentado e procurado desenvolver, mas é um conhecimento restrito, é um conhecimento limitado.


E quando a ciência avança em sentidos que contrariam algumas teses fundamentais da Igreja? Quando o que está escrito na Bíblia contraria descobertas da ciên­cia? Então a Igreja Católica excomunga esses cientistas, como fez no caso de Galileu. Galileu foi um caso típico, emblemático.

Quando há uma teoria científica que contradiz uma verdade de fé católica, das duas, uma: ou não é uma verdade científica, ou não é uma verdade de fé. Não há nenhuma contradição possível entre a verdade científica e a verdade revelada. Pode haver, eventualmente, alguma oposição, alguma contradição entre aquilo que algumas pessoas supõem que seja uma verdade científica, mas que o não é, ou então o que algumas pessoas supõem que seja uma verdade de fé e que o não é. Sabemos que às vezes há interpretações da própria Bíblia que são um pouco fundamentalistas e que, por isso, não são do magistério da Igreja, a Igreja não se identifica com elas, embora se calhar correspondam à literalidade do texto sagrado. Como também muitas vezes há interpretações científicas, hipóteses científicas que não contradizem a doutrina cristã, como, por exemplo, a Teoria da Evolução em relação à criação, muito embora certos sectores, mais apegados à interpretação literal da Bíblia – os criacionistas –, pensem que sim. Deus pode ter criado as espécies já diferenciadas no início, ou, pelo contrário, ter determinado a sua evolução.
Outro exemplo: o padre Lemaître, um belga que foi catedrático e reitor da Universidade de Lovaina e que foi grande amigo de Einstein, com quem trocou correspondência em relação à origem do Universo, foi quem formulou a teoria do Big Bang, que é uma hipótese, uma hipótese aceitável e razoá­vel. Mas não há contradição. Se há contradição, insisto, ou é porque uma coisa foi tomada como verdade científica, não sendo mais do que uma hipótese, ou então foi tomada por uma verdade de fé uma coisa que não é, de facto, doutrina católica.


Então o que aconteceu com Galileu? 

Galileu é uma pessoa estupenda, magnífica. Há um processo complicado…


Processo que esteve visível recentemente em Roma, numa exposição dos mais significativos documentos dos Arquivos Secretos do Vaticano.

Em Roma, exactamente. Temos especialistas, incluindo no nosso país, como o professor Henrique Leitão, que são grandes conhecedores do processo de Galileu. 
Eu diria que, de facto, há que distinguir a interpretação por alguns eclesiásticos das suas teorias, mas não necessariamente pela Igreja, porque é importante diferenciar aquilo que é o parecer da Igreja do que pode ser a opinião, até mesmo expressa por alguns eclesiásticos importantes, mas que não vinculam a Igreja, não a comprometem institucionalmente.
A observação fundamental é que a Igreja não defendia o geocentrismo por aparentemente alguns passos bíblicos, como Js 10, 12-13, aliás de interpretação difícil, o parecerem sugerir. A Igreja defendia o geocentrismo porque toda a ciência e todos os cientistas desde a antiguidade até ao século XVII o defendiam (com raríssimas excepções, apresentadas como hipótese). Qualquer um de nós, se tivesse vivido no tempo de Galileu, acharia que era uma ideia sem sentido, tanto mais que ele nem sequer tinha a prova do que afirmava. 
Por outro lado, a atitude de Galileu também merece alguns reparos, sobretudo no que respeita a um aproveitamento menos adequado da Sagrada Escritura. Ou seja, Galileu não conseguiu provar o que afirmou.
Ele afirmou uma coisa que é verdadeira e que era, de certo modo, revolucionária, embora também não fosse absolutamente inédita. Já outros, como Copérnico, tinham dado isso como possível, embora não o tivessem afirmado, mas apenas dito que seria possível, que era um modelo matemático, um modelo astronómico que estava em aberto. Galileu afirma-o, já não como mera hipótese, mas como realidade científica. Mas não tem provas e os argumentos que utiliza, como as marés, não são científicos, são razões que não provam aquilo que ele pretende demonstrar. E é precisamente por isso, porque ele não consegue provar cientificamente aquilo que quer demonstrar, que tenta usar a Sagrada Escritura em abono da sua teoria científica. Ora, isto é uma utilização falaciosa da Escritura, que não pode ser usada para esse fim. 
A Escritura não foi dada aos homens como uma explicação científica do Universo, mas como uma manifestação do amor que Deus tem por cada um de nós. Assim, a sua interpretação científica, o aproveitamento do texto sagrado para um fim específico, o de uma ciência positiva, era abusivo. Nisto tinham razão as personalidades da Igreja quando o proibiram de o fazer, ou seja, de utilizar a Escritura para os seus fins.
Galileu não tinha a graça necessária para interpretar a Escritura, porque essa interpretação está confiada à Igreja, através do seu próprio magistério. O magistério da Igreja é que interpreta a Escritura e diz o que significam as suas passagens. Galileu quis aproveitar-se da Bíblia, porque sabia que desse modo daria outra projecção às suas teorias. 
Depois, temos de reconhecer que houve relações menos cordiais entre alguns cardeais e Galileu, com uma ou outra ocasião em que o próprio Galileu não se portou muito bem. Por exemplo, foi recebido numa ocasião pelo papa e não se sabe ao certo o que aconteceu nesse encontro, mas pouco depois Galileu publicou um diálogo entre personagens fictícias (mas em que facilmente se reconhece que uma delas era o papa) no qual Galileu humilha essa personagem, ridicularizando-a nesse diálogo. Da parte de Galileu houve também algumas atitudes de pouca delicadeza para com o magistério da Igreja, para com o papa, que até simpatizava com ele, e com alguns dos cardeais, etc. 
Há uma coisa que é interessante dizer: é que não foi queimado pela fogueira! Galileu nasceu, viveu e morreu católico convicto. Era um homem de oração.


E não morreu na fogueira?

Não morreu na fogueira, morreu na cama, em paz e sossego, e sem nenhum problema de fé. Ele pode ter tido, como outros cristãos também tiveram ao longo da história do cristianismo, alguma dificuldade de relacionamento com outros membros da Igreja, mas isso não afectava a sua fé, ele não tinha nenhuma dúvida quanto à sua fé. Os seus desentendimentos com alguns eclesiásticos não o afastaram da Igreja, nem perturbaram a sua fé, nem a sua prática religiosa, como cristão fervoroso que foi até à morte.


Senhor padre Gonçalo Portocarrero de Almada, voltemos à questão da fé e da razão, uma questão muito querida ao papa Bento XVI, e que já o era do cardeal Ratzinger. Diria que há hoje, na comunidade científica – não propriamente em Portugal, porque estas coisas chegam sempre uns anos depois, mas na comunidade científica mundial –, numerosos livros saídos recentemente invertendo a questão da ciência e da fé. Parecia ser um assunto arrumado desde Darwin e certificado com os múltiplos avanços da ciência e resolvido para as elites. Ou seja, já não havia um choque entre a fé e a razão, pois pura e simplesmente a razão tinha substituído a fé. No entanto, quanto mais a ciência avança no conhecimento da perfeição do ADN, mais cientistas teorizam que a vida não pode ser filha de um acaso, e que não é por acaso que todas aquelas partículas se juntam na perfeição. Verificam também que as leis da natureza se repetem sempre, o que não pode deixar de apontar para um Deus.

É curioso, porque o discurso científico é um discurso muito limitado – muito útil, muito necessário, mas muito limitado –, porque a ciência explica o «como», mas não explica o «porquê». A ciência explica como funciona o ser humano e cada vez, se calhar, conseguimos conhecer mais pormenorizadamente o nosso organismo. Aliás, o avanço da medicina nos últimos 100 anos é uma coisa absolutamente espantosa, ou o conhecimento do cosmos: a dimensão do mundo é uma coisa maravilhosa!
Mas, de facto, há uma pergunta para a qual a ciên­cia não tem resposta: a ciência não sabe explicar nem o que é que as coisas são, nem sabe explicar o seu porquê. Se eu perguntar a um antropólogo o que é um ser humano, ele não me sabe dizer o que é. Um antropólogo é capaz de me dizer como é que vivem os indígenas das tribos da Amazónia e como é que vive um homem na Polinésia, mas não me sabe dizer o que é o ser humano. E se eu perguntar, já não apenas o que é o ser humano, mas a razão da sua existência e o seu sentido, então menos ainda será capaz de me responder! 
E, de facto, nós não somos capazes de nos entreter apenas com o conhecimento descritivo da realidade. Por mais complexo e por mais completo que seja, é sempre limitado – e por isso nós nunca nos conseguimos abstrair destas questões, que são as questões às quais a religião responde. 
Ao contrário do que seria de supor e do que o positivismo pretendia, e até mesmo o marxismo, ao profetizarem que a «superstição religiosa» iria desaparecer à medida que a ciência fosse avançando, não foi isso que aconteceu, mas exactamente o contrário. À medida que vamos conhecendo melhor a realidade, vamo-nos dando cada vez mais conta de que essa realidade exige uma inteligência e um ser perfeito. Coloca-nos diante da necessidade de responder num outro nível, que é o nível filosófico, ou metafísico, ou teológico, à questão sobre a existência de Deus. 


Entendo o que o senhor padre  afirmou, mas constata-se que com as descobertas de Darwin a religião recuou. É um facto que ninguém pode negar. Houve mesmo quem afirmasse que não se pode mais falar de Deus depois de Darwin.

É curioso notar que há uma certa relação entre Charles Darwin e Galileu Galilei: enquanto este último era um cientista, com pretensões de teólogo, aquele era formado em teologia mas, de facto, dedicou-se à biologia! Ambos foram, contudo, marcos importantíssimos da nossa cultura moderna e, como diz, as suas respectivas teorias tiveram efectivamente uma grande repercussão no âmbito da fé cristã.
Em relação à teoria da evolução, há aspectos propriamente científicos que não me parece curial comentar, por não me reconhecer competente para o efeito. A Deus o que é de Deus, a César o que é de César, e aos cientistas o que é dos cientistas. Se é verdade que, como já tive ocasião de dizer, Galileu não procedeu bem invocando a Sagrada Escritura como fundamento do heliocentrismo, os cardeais que se lhe opuseram também não agiram correctamente quando usaram a Bíblia para o refutarem, incorrendo assim, paradoxalmente, no mesmo erro pelo qual Galileu foi julgado e condenado…  
Contudo, creio que é pacífico afirmar que a teo­ria da evolução não é mais do que uma hipótese ou, se quiser, uma teoria plausível, mas não constitui uma lei científica, nem um facto empiricamente comprovado, nem sequer uma certeza. É muito sugestiva aquela imagem de vários seres, a começar num primata e a terminar num ser humano, mas não há provas irrefutáveis de que tenha sido assim. 
Por outro lado, há uma evidência antropológica que não pode ser ignorada: mesmo que a matéria de que é feito o corpo humano possa ter sofrido uma certa evolução, como aliás o próprio livro do Génesis sugere, há necessariamente um momento em que essa matéria, animada ou não, passa a ser propriamente um corpo humano – e esse instante é o da infusão da alma. Portanto, a condição humana não é susceptível de um processo evolutivo: ou se é homem, ou não se é, mas não há hipótese de uma etapa intermédia. Entre o ser e o nada não há uma terceira hipótese, como a não há entre a vida e a morte. 
Do ponto de vista da fé, nada impede que a criação do primeiro ser humano, que exige a acção divina pela qual é criada a sua alma e infundida no seu corpo, tenha sido precedida de um processo de evolução dessa matéria. Mas essa realidade física só é corpo humano a partir do momento em que está integrada num todo dotado de vida própria. Se amanhã eu receber uma transfusão de sangue, esse líquido ficará integrado na minha realidade corpórea, será parte do meu ser, mas hoje esse sangue, mesmo que já possa ser meu, não é uma parte de mim, não sou eu. Do mesmo modo como um membro, separado do corpo a que pertenceu, já não é parte desse organismo e, por isso, não pode ter vida em si mesmo. Aquele dedo, mão, pé ou braço pode ter sido meu, mas já não sou eu, porque eu sou apenas o meu corpo enquanto unido à minha alma. De certo modo, é o que acontece com a geração de um novo ser humano: o material genético feminino e masculino ainda não são o novo ser, mas a partir do momento da concepção, ganham uma nova identidade, já não são elementos do corpo paterno e materno, mas uma realidade inédita, que tem uma vida própria, diferenciada da dos seus progenitores.
Portanto, devemos relativizar as possíveis conclusões a que chegue a teoria da evolução: esses eventuais seres, cuja matéria teria sido utilizada para a criação do homem, não seriam nossos antepassados, como as tintas de que foi feito o quadro também não são ainda nenhuma pintura, nem seu antecedente, até porque o quadro não se faz só com tintas, mas também e sobretudo pela acção inteligente do artista. Deus pode-se ter servido de elementos pré-humanos para a constituição de um todo orgânico, um material apto para que nele pudesse depois ser infundida uma força, uma energia imanente, a que chamamos alma, ou vida. Mas mesmo essa matéria evoluída seria também efeito de uma acção divina, pelo menos como seu primeiro princípio ou última causa, embora anterior à criação e infusão da alma. A evolução, com efeito, exige uma rea­lidade prévia, que é o objecto que evolui, bem como um agente, alguém que oriente esse processo. Crer que tudo vem do acaso e que a organização da matéria não obedece a nenhum plano ou acção inteligente é tão absurdo como afirmar que as letras de Os Lusíadas surgiram por geração espontânea e juntaram-se por sua própria iniciativa nesse poema!
De todos os modos, parece-me que o evolucionismo há muito que deixou de ser uma mera questão científica, para se converter numa nova ideologia sobre a natureza humana. Por exemplo, hoje tende-se a considerar que a distinção entre os animais irracionais e os seres humanos é apenas de grau mas não de essência, e por isso há quem defenda os inverosímeis «direitos dos animais» e ainda quem pretenda pautar o comportamento humano em função das atitudes dos seres irracionais, o que me permiti chamar algures uma «ética bestial», em sentido próprio…  
Por último, tende-se a considerar que a natureza humana não é uma realidade fixa, determinada, assente em princípios objectivos, mas uma entidade cambiante, em permanente mutação, um fluxo que apenas obedece a um desejo inato de superação. Talvez esteja aqui uma das matrizes do moderno relativismo: do mesmo modo como a hipótese evolucionista propõe vários estágios da condição humana, somos levados a crer que há muitas modalidades da existência humana, da afectividade humana, da sexualidade humana, da família humana, etc. A selecção natural, a eliminação dos mais fracos, etc., sugere também políticas de selecção e de segregação social e até, em última análise, práticas de extermínio dos considerados socialmente menos hábeis, como acontece na vida selvagem e como aconteceu nos campos de concentração da Alemanha nazi.
Embora nada tenha a opor à teoria científica da evolução – que, insisto, é tema que cabe à ciência esclarecer e é compatível com a doutrina cristã –, vejo com alguma preocupação a emergência desta ideologia evolucionista, que não só parece alheia à lógica do mandamento novo da caridade, como também pretenderá substituir o princípio bíblico, «crescei e multiplicai-vos», pela máxima «evoluí e eliminai-vos»…  


O teólogo Henri de Lubac (jesuíta) escreveu que, no início do cristianismo, o facto de o catolicismo ser uma religião monoteísta, que acreditava num Deus único, significou uma libertação para o homem – que deixa de estar disponível para satisfazer os caprichos dos mais variados deuses e deusas, e é sabido como eram muito caprichosos. Mas, andando no tempo, temos a sensação de que a Igreja não foi acompanhando a evolução do pensamento científico, e tentou mesmo condicionar a liberdade dos investigadores, limitando intelectualmente a sua liberdade de fazerem descobertas que, no fundo, pusessem em causa muitas das teorias que vêm na Bíblia. Concorda?

Não, a Igreja sempre viu com grande agrado e sempre potenciou o desenvolvimento científico.


Mas não queria deixar a questão da razão e da fé, uma vez que se trata de um dos temas mais importantes do nosso tempo. Muitos cientistas e muitos académicos consideram que falar de fé é uma questão menor, sem interesse, e que revela mesmo uma profunda ignorância de quem procura tratar do assunto. Parte-se do princípio de que uma pessoa racional, culta e inteligente não tem um pensamento compatível com o estatuto de crente. Esta tese generalizou-se desde o século XVIII, com os filósofos que marcaram o pensamento filosófico do iluminismo. Por outro lado, parece-me que o desaparecimento da fé é de certa forma análogo ao desaparecimento da filosofia. Não se ensina filosofia, ou apenas têm acesso a conhecimentos de filosofia estudantes de cursos humanísticos muito específicos. Este caminho anulou o pensamento abstracto. As pessoas não aprendem a pensar – aprendem a raciocinar, claro, mas não a pensar – e, portanto, não têm mundo abstracto à sua volta. Sinal disso é um curioso livro publicado recentemente em Itália, intitulado O átrio sem gentios, reconhecendo que no tempo presente poucos se questionam sobre a existência de Deus. Constata-se que Deus não existe, ou só existe para os ignorantes, os iletrados, os incultos. 

Eu diria que isso é um preconceito e é um preconceito que não honra as pessoas que o expressam, porque, com todo o respeito pelos não-crentes e agnósticos, acho que é bom desmistificar quer o ateísmo quer o agnosticismo.
O ateísmo é um erro, logo não merece ser considerado sequer do ponto de vista intelectual, porque não faz sentido – não estou a usar uma linguagem de fé, mas uma linguagem racional. Não faz sentido eu admitir um efeito para o qual digo que não existe uma causa! Para haver um efeito, tem de haver uma causa, e a causa tem de ser proporcional ao efeito. 


Isso significa, senhor padre, afirmar que são os ateus que têm de provar que Deus não existe, porque o pensamento óbvio, racional e sem preconceitos é o de equacionar o mundo em que Deus existe? Isso equivale à constatação de que, se nós existimos, Deus existe?

Claro, com certeza. A minha existência, a existência do mundo é um facto que requer necessariamente um antecedente e esse antecedente é, em última análise, Deus. Aliás, as famosas vias de demonstração da existência de Deus, de São Tomás de Aquino, e outras mais que foram formuladas ao longo da História, vão todas nesse sentido. São discursos racionais, explicações da razão, explicações argumentadas em virtude das quais se prova a necessidade da existência de um ser superior, a que nós chamamos Deus, que está na origem e que é a causa de todas as coisas. Portanto, o ateísmo é uma atitude violenta contra a razão. Uma pessoa só consegue ser ateia quando interdita a sua razão de proceder, natural e inteligentemente, na busca do fim e da razão de todas as coisas.


É por a natureza obedecer a leis muito concretas que a ciência existe? A ciência só o é porque a natureza se rege por leis, leis que se repetem na física, na matemática, e porque 2 e 2 são 4!

Sim, há uma noção de ordem, de beleza e há uma noção também de que as coisas irracionais agem com uma inteligência que não está nelas – logo, essa inteligência tem de estar em alguém, que será o seu criador. Eu não digo à ovelha que o lobo é mau, mas a ovelha «sabe» que o lobo é mau. Não sabe porque seja capaz de ter esse conhecimento, mas porque tem uma regra, porque tem um instinto, um mecanismo interior que a leva a fugir daquilo que é nocivo para ela, como também a leva a procurar aquilo que é bom, e por isso sabe qual é o alimento que deve ingerir e aquele que não deve comer. Essa inteligência da criatura irracional é uma inteligência que requer alguém, requer um ser, requer um ser afastado da criação e que a criou e que a comandou neste sentido e com este equilíbrio.


Isso é a natureza apontando para a existência de Deus? Será que considera que a natureza prova a existência de Deus? Será que prova igualmente a existência de vida? O facto de existir um ser inteligente, que é o homem, cuja inteligência não é igual à da ovelha ou do lobo, um ser que é o resultado de um acto divino, de Deus ter querido que assim acontecesse. Se assim fosse, estaria em causa a teoria de Darwin? Está a defender uma teoria contrária ao evolucionismo?

Não necessariamente, ou seja, estou a defender, sim, que o homem é um ser absolutamente singular no Universo, que é um ser único, não é comparável a nenhum animal, a nenhuma planta, a nenhuma realidade material.


Por ser dotado de inteligência?

Exactamente, é isso aquilo que, na linguagem bíblica, se diz ao afirmar que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27) – nenhuma das outras criaturas foi criada à imagem e semelhança de Deus. O homem, sim, e tem por isso um estatuto absolutamente singular e único. É por isso que também se diz que o homem foi o único ser que Deus criou por si mesmo: as outras coisas não foram criadas por si mesmas, foram criadas para o homem e o homem foi criado para Deus. 
O modo como o homem foi criado é, de certa forma, algo que a ciência poderá um dia dar-nos a conhecer. Sabemos que a linguagem utilizada na Bíblia, para referir a criação do homem, tem uma finalidade concreta que é a de mostrar que o ser humano é um ser absolutamente especial e que é um ser criado directamente por Deus e no qual Deus espelhou a sua inteligência e a sua vontade. Por isso, o homem é um ser livre, o homem e a mulher têm a mesma dignidade, têm a mesma condição, são iguais naquilo que diz respeito aos seus direitos e aos seus deveres fundamentais. Embora diferentes quanto à modalidade do seu género, porque o homem é macho e a mulher é fêmea e isso tem consequências ao nível do seu próprio espírito, da sua psicologia, do seu corpo, etc., têm a mesma condição e a mesma dignidade. 
A Bíblia utiliza uma linguagem poética e deve assim ser lida, e não pode ser interpretada literalmente, como se fosse um discurso científico. Quando Deus nos fala da criação do mundo em 6 dias (Gn 1) não nos está a dizer que a criação do mundo ocorreu em 6 dias, como é óbvio!


E ao sétimo descansou...

E ao sétimo descansou. Mas não está só a dizer que Deus criou todas as coisas, o que é importante, mas também que Deus criou cada uma delas. O que aconteceria se o livro da Bíblia nos dissesse: «Deus criou tudo num instante»? Nós tínhamos a ideia de que Deus era uma espécie de industrial que carrega num botão e as coisas aparecem! Mas, se nos diz que Deus num dia criou uma coisa, noutro dia outra, num dia colocou os astros, no outro dia fez as plantas, no outro dia criou os animais terrestres e no outro dia os peixes, nós olhamos para Deus como para um pai, ou uma mãe, que está a decorar o quarto do bebé antes de o ter, não é? Há uma atitude de amor, há uma solicitude amorosa que nos é referida pelo modo como é descrita a própria criação. E, como a Bíblia não é um texto escrito para um número selecto de inteligências privilegiadas, como os cientistas, mas escrito para os homens do mundo inteiro, foi utilizada uma linguagem acessível para todos nós, e daí recorrer a essas expressões menos exactas em termos científicos, mas de grande beleza e verdade poética. Seria errado, evidentemente, pretender que essa linguagem fosse interpretada literalmente, porque então também tínhamos que dizer que o demónio é uma serpente ou que as serpentes falam, coisa que não faz sentido!
Quanto ao modo como surge o corpo humano, no qual é infundida a alma (é da união do corpo e da alma que surge o ser humano)… Bom, isso a ciência poderá e deverá averiguar.


Por vezes a gente da ciência, quando se interroga sobre o aparecimento do mundo e sobre o aparecimento do ser humano, também nos quer fazer acreditar em algo de impossível, ou seja, que o mundo nasceu do nada, e o ser humano do acaso. Como é possível não nos interrogarmos como pessoas nascidas do nada e para nada? Essa dúvida, muito frequente no passado, é a essência da filosofia, e hoje parece estar banida, ser um tabu que a própria ciência exclui, como se a ciência pudesse excluir alguma questão.

É curioso que há uma tese que São Tomás de Aquino defendeu, uma tese filosófica alheia à fé, sobre a possibilidade racional de um mundo eterno. Ou seja, Deus podia ter criado um mundo eterno, um mundo que tivesse existido desde sempre. Isto a nós faz-nos uma certa confusão, porque nós temos tendência a pensar que tudo aquilo que é criado é criado no tempo, porque, para nós, todas as coisas acontecem no espaço e no tempo, não somos capazes de imaginar algo fora do espaço e do tempo. 
Mas São Tomás de Aquino disse que seria possível a Deus criar o mundo fora do tempo, isto é, eterno. Um mundo que existisse desde sempre. Isto não é imaginável, torna-se difícil para nós aceitarmos isso. Ele diz que tal não aconteceu, mas a razão pela qual nós sabemos que isso não aconteceu não é porque seja metafisicamente impossível, mas porque foi revelado que o mundo foi criado no tempo. O mundo não existiu antes desse momento, há um antes do mundo, há algo anterior à sua existência. 
Mas, de facto, o que nunca poderia acontecer é que o mundo não fosse criado, isso não é possível. Se eu tenho uma cadeira, eu posso não saber quem fez aquela cadeira, eu posso não saber a idade da cadeira, mas eu tenho a certeza absoluta de que alguém a fez, não é? A existência do efeito requer, necessariamente, a existência da causa. Eu tenho um livro, eu sei que esse livro foi escrito por alguém, eu sei que esse livro foi necessariamente realizado por alguém, o livro não pode surgir do nada, o livro não surge por si próprio, é um absurdo a possibilidade de o mundo existir por si mesmo. Como diziam os antigos: ex nihilo, nihil fit – do nada, nada se faz.

Neste diálogo entre fé e razão, uma das questões mais complexas de responder, de um lado e do outro, tem a ver com o aparecimento da vida. Há quem procure insistentemente na ciência explicar que a vida nasceu por acaso da matéria, isto é, da junção de átomos, ou outras quaisquer partículas que um dia deram origem à vida. Não acha que esta tese é tão intrigante e impossível como demonstrar que a vida nasceu de Deus e que Deus existe? Ou não? O que é mais racional? O acaso ou a vontade de Deus?

Nós não somos capazes de definir com rigor a vida, porque até mesmo a matéria é de tal forma sofisticada e complexa que nós não somos capazes de a criar, quanto mais a vida! Toda a comunidade científica mundial não é capaz de fazer uma formiga. 


Já foi capaz de clonar uma ovelha…

Exactamente, de clonar é capaz, mas criar não consegue. O acto em virtude do qual do nada surge alguma coisa é, necessariamente, um acto que ultrapassa a nossa capacidade. Ora, nós, não conhecendo no mundo um outro ser tão desenvolvido como nós próprios, não podemos encontrar no mundo uma razão para a sua própria existência, e como tal temos necessariamente que admitir essa realidade, a da existência de um ser que é a origem de todas as coisas que existem. Se depois essas coisas que existem têm a capacidade de se juntarem, de forma a constituírem organizações mais complexas, em que há um certo tipo de actividade imanente que é, ao fim e ao cabo, aquilo que se entende por vida, muito bem, com certeza! Mas o que é que está na origem, o que é que está no princípio?

Há uma famosa frase que Platão atribui a Sócrates e que não só é muito actual como guia a civilização ocidental desde sempre: «Nós temos que seguir a razão para onde quer que ela nos leve.» Agora recentemente a ciência deu, parece, um salto importante. Não sei bem avaliar a importância desse salto mas descobriu-se uma nova partícula, atrás da qual a ciência andava há mais de 50 anos. Curiosamente, essa experiência do CERN que levou à partícula de Higgs, houve uma certa tentação em muita comunicação social de misturar esse novo conhecimento com a questão de Deus, chamou-se-lhe mesmo «a partícula de Deus». Alguns diziam com mais rigor «partícula divina». Será que quanto mais a ciência avança, mais nos leva a duvidar de que o Universo tenha sido criado por Deus? Concorda que este passo da ciência, como outros que ocorreram ao longo do último século, têm contribuído para demonstrar que Deus não criou o Universo?

Por um lado permita-me que lhe diga que considero, de facto, magnífica esta nova descoberta científica! A Igreja não é adversa do progresso, do conhecimento humano, não olha com indiferença ou desconfiança para estes acontecimentos; muito pelo contrário, sente-se protagonista, desde a primeira hora, desta apaixonante aventura. É interessante referir que, no exíguo Estado do Vaticano, há um observatório astronómico, que é a manifestação palpável desse mesmo interesse por todo o conhecimento científico, porque o conhecimento humano, se é um conhecimento verdadeiro, leva a Deus.
Em relação a esta nova e espectacular descoberta científica, monsenhor Sánches Sorondo, chanceler da Pontifícia Academia das Ciências, disse duas coisas que eu desejaria sublinhar: por um lado, que esta descoberta tinha já sido intuída pela inteligência humana, mas que até à data carecia de uma prova experimental, que foi agora encontrada. Isto quer dizer que o nosso entendimento, a razão humana, muitas vezes acerta naquilo que intui que existe no Universo, mesmo antes de o poder observar experimentalmente. Ou seja, a nossa inteligência é capaz de prever as leis científicas, antecipando-se à sua comprovação empírica, porque a própria realidade é, por assim dizer, inteligente, na medida em que cumpre uma lei que faz sentido, que não é irracional ou ininteligível. Isto prova que o mundo não é fruto do acaso, mas obedece a uma razão criadora, que a nossa inteligência consegue intuir, mesmo antes de a verificar cientificamente.
Antes de se investigar, procura-se encontrar uma razão, uma explicação provável, uma possível causa, porque não se pode procurar tudo, em todos os sítios e em todos os lugares, há que direccionar a pesquisa. Esta atitude pressupõe, de facto, uma antecipação da nossa razão, fundada na certeza de que o Universo se rege por leis inteligentes e não pelo acaso. É claro que, quando se trata das ciências experimentais, o recurso à experimentação empírica comprovará ou, pelo contrário, como diria Popper, falsificará essa hipótese, que, se não for comprovada pela experiência, terá de ser abandonada.
A segunda questão a que fez referência o chanceler da Pontifícia Academia das Ciências, e que me parece muito interessante, é o facto de a ciência poder dizer que algo existe. Este famoso bosão de Higgs não foi nada fácil de encontrar: foi preciso repetir, muitas vezes, as mesmas experiências para poder detectar, com alguma segurança, esta partícula subatómica, que obviamente não pode ser observada facilmente. Mas a ciência fica-se por aí: conclui na constatação do facto, na comprovação da existência desta realidade. A comunidade científica sabe que isto não é um dado absolutamente definitivo. Talvez daqui a 5 anos, ou daqui a 10 anos, ou daqui a 20 anos, tenhamos instrumentos ainda mais sofisticados, que nos permitam ir ainda mais além deste bosão de Higgs. Mas há uma pergunta que não se pode ignorar: «Quem é que pôs isso lá?» E essa pergunta já não é uma pergunta científica, é uma pergunta filosófica e teológica.


É o momento em que a ciência e a teologia se tocam?

Sim, a pergunta sobre o porquê já remete para a filosofia e para a teologia. O cientista não pode deixar de apreciar a realidade, de comprovar a beleza de um plano inteligente, e, portanto, dá-se conta de que as coisas que acontecem não acontecem por acaso. Como dizia Einstein, «Deus não joga aos dados». Portanto, as coisas têm um sentido, as coisas têm uma razão, mas a razão que as coisas manifestam não está nelas, porque não são inteligentes nem se movem por si mesmas, mas no seu autor, e portanto, de uma forma quase necessária, o conhecimento aprofundado da realidade, que é a ciência, ao fim e ao cabo remete-nos para uma inteligência superior, remete-nos para alguém que é o criador inteligente do mundo e esse é Aquele a quem chamamos Deus.


Regressando à fé, é por vezes evidente que muitos membros da Igreja falam mais frequentemente da virtude da caridade do que da fé ou da esperança, e têm a preocupação prioritária de mostrar as suas obras sociais – que são inequivocamente muito importantes. A Igreja tem uma tradição inquestionável de trabalho junto dos pobres, junto dos deficientes e junto dos doentes. Simultaneamente, ficamos com a sensação de que há membros da Igreja – padres, bispos, mesmo cardeais – que evitam falar de Deus e referem-se muito mais facilmente às obras sociais que desenvolvem, talvez porque considerem mais «aceitável» a sua mensagem. Exprimindo-me mais docemente, diria que talvez se considerem mais escutados pelas pessoas sem fé, transmitindo uma mensagem social.

Sabe que um escritor, um Nobel, Vargas Llosa, numa ocasião determinada, fez uma observação muito curiosa, era ainda viva a madre Teresa de Calcutá. Disse ele: «Eu aprecio muito a caridade da madre Teresa de Calcutá, o trabalho que ela faz com os mais pobres dos pobres e a forma como cuida dos órfãos, mas não aprecio a sua fé.» E eu diria que esta atitude é uma atitude talvez recorrente, ou seja, há pessoas que entendem a fé como uma limitação, ou, quando muito, na melhor das hipóteses, como algo discutível – mas a caridade, não, porque a caridade é serviço, a caridade é útil, a caridade é benéfica para o mundo. Mas isto seria tão disparatado como dizer: «eu aprecio muito as rodas daquele carro, porque andam muito, mas não tenho grande interesse pelo motor, que não vejo, nem sei o que é». De facto, com certeza que a caridade é importantíssima, mas a fé não o é menos.


Não se pode deixar de considerar que se trata de uma atitude um pouco defensiva. Isto é, na comunicação social, particularmente na televisão, aparecer um padre a falar de uma obra social que dirige – mesmo tratando-se de uma obra social importante, repito – passa muito bem (e se falar de crise e de política ainda melhor). Mas entrar nas nossas casas a falar de Deus é quase considerado insuportável por muitos espectadores, e ainda mais por jornalistas. Se o fizer, é considerado de imediato um retrógrado, um conservador, alguém fora de moda e logo por isso inaceitável.

Eu acho que é importante que a Igreja não ceda à tentação de ser agradável, ou de ter um discurso que vá ao encontro daquilo que as pessoas querem ouvir. A Igreja tem a sua própria mensagem, tem a sua própria missão e não a pode trair. Tem de a dar a conhecer, na fidelidade ao seu Mestre. Se quiser até, no limite, poderíamos dizer que Jesus Cristo viveu na terra muitos anos, seguramente mais de 30, dos quais pelo menos os últimos 10 terão sido vividos já como pessoa adulta. Contudo, não consta que tenha fundado nenhuma instituição social… E havia pobres, mendigos e outros necessitados, para com quem Ele manifestou sempre uma enorme compaixão. Mas a sua principal preocupação foi formar na fé aqueles que eram os Seus discípulos. O resto viria como uma continuação, viria como uma consequência necessária dessa fé – uma fé bem vivida não pode deixar de ter frutos de caridade. Se nos dedicarmos só à caridade, podemos confundir-nos com uma ONG, ou com uma instituição social que realizaria, sem dúvida, um trabalho magnífico, mas que teria perdido a sua especificidade. E se a Igreja não fala de Deus, ou se a Igreja não transmite a sua fé ao mundo, ninguém o fará por ela. Ao passo que, se a Igreja não fizer um determinado trabalho social, talvez mais ninguém o faça, mas até pode ser que algumas pessoas o façam, porque há quem não sendo crente também se dedique a trabalhos humanitários, ou trabalhos de algum modo filantrópicos.
Acho que é importante ir ao cerne daquilo que é a missão da Igreja e não nos distrairmos com outras coisas – que não são coisas más, insisto, são coisas boas, mas não são aquilo que é a missão específica da Igreja e que só nós, os crentes, só nós os fiéis podemos realizar.


São Pedro escreveu (1 Pe 3,15): «dar razão da vossa esperança a todo aquele que vo-lo peça». A esperança é uma das virtudes do catolicismo e não foi certamente por acaso que Bento XVI lhe dedicou uma encíclica. No entanto, alguém escreveu que é a menor das virtudes e não vivemos tempos de muita esperança. Concorda se disser que a esperança para os católicos corresponde ao optimismo para os políticos?

Conta-se de Alexandre Magno um episódio significativo: depois de ter conquistado um dos mais amplos impérios do mundo e sentindo próxima a morte, decidiu repartir entre os seus generais todas as suas terras e bens. Um dos seus cortesãos perguntou-lhe o que reservava para si mesmo, ao que o filho de Filipe da Macedónia terá respondido: a esperança!
Mas a esperança, como dizia, parece ser a gata borralheira das virtudes teologais: a fé é o esplendor da verdade, a caridade é a excelência do amor e a esperança parece ser, apenas, uma antecipada satisfação, um rebuçado que nos é dado neste vale de lágrimas, para que não desanimemos no esforçado empenho pela santidade. Há até quem pense que a esperança tem muito pouco de virtude, porque a perspectiva do ganho posterior parece retirar todo o valor ao acto virtuoso. Com efeito, se o bem é feito na mira de uma recompensa futura, já não é um dom gratuito, mas interesseiro ou calculista. Até porque dar para receber em troca já não é dar, mas emprestar, ou, até, negociar.
Sem ânimo de esgotar o tema, tão excelentemente tratado por Bento XVI na sua encíclica Spe salvi, permita-me no entanto que lhe diga que a razão de fim não retira mérito à acção, antes a justifica. Quando duas pessoas namoram, fazem-no na perspectiva de um futuro casamento – e ninguém entende que esse objectivo retira autenticidade à sua relação de amizade, até porque, se não fosse para casarem, o namoro não faria sentido. Por isso, os antigos diziam que o fim é a última etapa na ordem da execução, mas a primeira na intenção: é porque quero alcançar uma determinada meta que me ponho a caminho. Portanto, a esperança natural é uma consequência lógica da racionalidade da acção humana.
A esperança cristã, contudo, não é apenas isso, mas a certeza de que o anseio de vida eterna e de felicidade é já uma realidade em Cristo Nosso Senhor. É curioso notar como até as canções pimbas falam de eternidade, apelam a um amor sem fim, reivindicam uma juventude perene, uma alegria inesgotável… mas ficam-se por aí! Pelo contrário, a fé cristã, mais do que promessa de um mundo melhor, é já a sua realização: por isso, quando Jesus fala da comunhão eucarística, não diz apenas que é penhor de uma vida eterna futura, mas que aquele que, nas devidas condições, recebe o seu corpo, já tem em si a vida eterna (Jo 6,54). Não é uma promessa, mas uma realidade já presente na alma em graça, como também a nossa filiação divina – e haverá coisa mais estupenda do que se saber e ser filho de Deus?! – não é algo que nos será concedido na outra vida, se nos salvarmos, mas algo que é real já nesta vida, pela graça do baptismo, muito embora só no Céu nos seja dada a experimentar em plenitude (cf. 1 Jo 3,1-2).
Do mesmo modo que a caridade e a fé, também a esperança é uma virtude teologal, na medida em que tem Deus por objecto. Ou seja, a esperança cristã não é uma espécie de fezada de que as coisas hão-de correr bem, um ingénuo optimismo em relação ao futuro, uma generosa expectativa do que vai ser o destino, mas, pelo contrário, a absoluta certeza de que, quaisquer que sejam os acontecimentos, tudo será para bem, porque tudo é graça, tudo é amor de Deus. 
Permita-me que, a modo de conclusão, remate esta resposta com um texto de Paulo aos romanos: «Quem nos separará, pois, do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada? Mas de todas estas coisas saímos mais que vencedores por Aquele que nos amou. Porque eu estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas presentes, nem as futuras, nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra criatura nos poderá separar do amor que Deus nos manifesta em Cristo Jesus, nosso Senhor» (Rm 8,35.37-39).    


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