Censura Nunca Mais! (1.º capítulo)
Publié par Hugo Neves le
Apresentação
Este livro inscreve‑se no contexto do projeto de investigação Censura e mecanismos de controlo da informação no Teatro e no Cinema. Antes, durante e após o Estado Novo (PTDC/
/CCI‑COM/117978/2010), financiado pela Fundação para a Ciência e a Técnologia.
A questão central deste projeto é pesquisar e estudar as várias facetas e a evolução dos processos e dos mecanismos de controlo criados pela ditadura militar e pelo Estado Novo, especialmente no que diz respeito à censura ao cinema e ao teatro. Pretendemos ainda compreender como estes processos foram naturalizados ao ponto de influírem nos procedimentos e formas de pensamento no tempo das democracias. Agora, já não sob a forma de censura explícita, mas como critérios ideológicos para a ação ou modus operandi que, de forma inconsciente, emergem na produção artística. Por isso, este trabalho abrange um tempo longo, entre 1926 a finais dos anos 1970. Esta investigação é realizada por uma equipa de trabalho que reúne nove investigadores de diversas áreas científicas e articula investigadores séniores com outros que estão em diferentes níveis de formação.
Os objetivos desta investigação são: identificar e mapear os mecanismos da ação da censura no cinema e no teatro; conhecer e compreender as suas estratégias, métodos explícitos e sistemáticos, bem como as intenções dos cortes ou das proibições; identificar os condicionamentos estéticos; comparar os critérios de classificação etária antes e depois do 25 de abril de 1974; analisar a política de apoio à produção de cinema pelo Fundo do Cinema Nacional.
A realização da investigação assentará em cinco momentos: a vigência da ditadura militar (1926‑33), onde se estabeleceram os primeiros quadros legais para a prática da censura; as primeiras décadas do Estado Novo, que corresponde ao período de maior investimento ideológico e à direção do SPN/SNI por António Ferro (1933‑49); a década de 1950, pelas diversas expectativas em relação ao futuro de Salazar pós-1945; o período entre 1968‑74, que corresponde ao governo de Marcello Caetano; a transição para a democracia, o designado PREC, pela reavaliação e recontextualização da ação da censura numa sociedade democrática, agora entendida apenas como método de classificação etária.
Este livro é constituído por diversos contributos dos investigadores e apresentam‑se oito trabalhos que refletem estudos sobre a censura, quer ao teatro, quer ao cinema.
Assim, Ana Cabrera, em Censura e estratégias censurantes na sociedade contemporânea, analisa os processos censórios em Portugal durante o Estado Novo (1933‑1974), centra‑se, em particular, na censura ao teatro e ao cinema e analisa este sistema de controlo na perspetiva das estratégias políticas do regime. Nesse sentido, a censura é aqui apresentada numa perspetiva de integração das medidas e dos mecanismos políticos criados pelo Estado Novo (PIDE, FNAT, MP, SN, entre outros) para enquadrar a sociedade e mantê‑la sob sujeição.
Durante o Estado Novo a censura foi usada como instrumento de autoridade política destinado a controlar a sociedade e constituiu um dos pilares fundamentais do poder de Salazar e de Caetano: servia os interesses do Estado, a moral oficial, silenciava a oposição e criava as condições para veicular a ideologia dominante – «Deus Pátria Família» – que se consubstanciava no temor a Deus, no amor à Pátria, de que resultava a obediência a Salazar, e à família.
Este trabalho baseia‑se no estudo de fontes documentais do Secretariado da Propaganda Nacional/Secretariado Nacional de Informação: «Actas das reuniões da Comissão de Censura» e «Processos da Censura ao Teatro e ao Cinema». Foi com base nestas fontes que chegámos à estrutura de funcionamento das Comissões de Censura, ao processo de atuação, às decisões, aos critérios de cortes e de proibições de que o teatro e o cinema português foram objeto durante o Estado Novo.
À maneira de conclusão, sublinha‑se que a censura configurou um dos aspetos estratégicos usados pelo regime de Salazar e de Caetano para manter a sociedade, a cultura e a criatividade sob controlo. Este controlo servia como forma de transmitir e propagar em exclusivo a ideologia e os padrões culturais do regime, abafando todas as produções suscetíveis de criar disruturas e contágios que pusessem em causa o doutrinamento e a difusão da ideologia do Estado Novo.
A Opinião pública sobre a censura de Maria Cristina Castilho Costa, reflete resultados dos estudos sobre a censura iniciados em 2000 a partir do Arquivo Miroel Silveira (MAS), da Biblioteca da ECA/USP. Este fundo documental, resgatado por Miroel Silveira, Professor da USP, reúne mais de seis mil processos de censura prévia ao teatro em São Paulo entre 1930 a 1970. O estudo dos documentos do MAS originaram diversos trabalhos académicos que partiram de diversas metodologias e de diferentes focos analíticos.
A questão que a autora levanta neste trabalho é a de que com o advento das democracias e a extinção das instituições responsáveis pela censura, levava a crer que a reflexão e estudo sobre a censura em democracia seria desnecessária. Assim surgiu o novo projeto no Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Censura da Universidade de São Paulo – o NPCC-USP – que estuda a censura na atualidade. São justamente resultados iniciais dessa pesquisa que se apresentam e discutem neste trabalho.
A censura depois da censura: o caso dos filmes eróticos e pornográficos (1974‑76), é o resultado de uma investigação realizada por Paulo Cunha. Defende que, em abril de 1974, após o derrube do regime fascista, uma das primeiras medidas políticas do Movimento das Forças Armadas (MFA) foi a «abolição da censura e do exame prévio» enquanto medida necessária para garantir a liberdade de pensamento e de expressão.
Nos dias seguintes, o Gabinete do Delegado à Secretaria de Estado da Informação e Turismo, através de um comunicado da Comissão de Cultura e Espetáculos, reiterou a decisão do MFA mas, reconhecendo a necessidade de «salvaguardar os segredos militares e evitar perturbações na opinião pública», propôs a criação de uma comissão ad hoc para controlo da imprensa, rádio, televisão, teatro e cinema e, no caso específico do cinema, a definição de um novo esquema de classificação etária para espetáculos cinematográficos, ambos de carácter provisório até aprovação de nova legislação.
A nova tabela etária definia quatro escalões: «para todos (maiores de 6 anos)»; «não aconselháveis a menores de 13 anos»; «não aconselháveis a menores de 18 anos»; «interditos a menores de 18 anos».
Entre os filmes cujo visionamento era interdito a menores de 18 contam‑se os que demonstram «a perversão, expressa em termos psiquiátricos»; e, de alguma forma, «explorem uma sexualidade que surge desumanizada ou sob formas manifestamente chocantes»; «incluam violência quando assumindo formas sadomasoquistas ou conduzam à aprendizagem de técnicas de agressão»; «insiram uma apologia do recurso à droga, alcoolismo incluído, como solução para problemas individuais ou sociais»; «que apresentem casos psiquiátricos susceptíveis de originar a identificação com a personagem e afectar a saúde mental do espectador».
Os casos de filmes eróticos e pornográficos, liminarmente proibidos em Portugal antes de 1974, promoveram um dos debates mais polémicos sobre cinema na sociedade portuguesa em pleno processo de democratização. Quando filmes considerados malditos como Último tango em Paris (Bernardo Bertolucci, 1972), Laranja mecânica (Stanley Kubrick, 1971), Emmanuelle (Just Jaeckin, 1974) ou Por detrás da porta verde (James Mitchell e Artie Mitchell, 1972) estrearam nas salas portuguesas, o debate público acerca da exibição de conteúdos «eróticos» ou «pornográficos» no cinema reacendeu na sociedade portuguesa.
Em abril de 1976, a publicação de legislação cinematográfica com especial enfoque no cinema dito «pornográfico» (decreto‑lei n.º 254/76 de 7 de Abril de 1976) foi outro momento mediático de discussão pública sobre que aspetos da sexualidade seriam censurados ou permitidos a espectadores considerados mais suscetíveis.
O objetivo deste texto será identificar, documentar e analisar os principais momentos de debate público sobre a questão da censura após a abolição da censura fascista, dando atenção à receção de filmes com supostos conteúdos «eróticos» ou «pornográficos» entre o fim da ditadura e o fim do designado processo revolucionário em curso (PREC).
As imagens proibidas – estratégias da censura ao cinema nacional é um capítulo onde Leonor Areal explica que a censura aos espetáculos cinematográficos foi legislada em Portugal em 1927, após a subida ao poder de Salazar, mas só em 1948 foi instituída a censura prévia de filmes, com a criação da Comissão de Censura dos Espetáculos e do Fundo do Cinema Nacional destinado a apoiar as produções cinematográficas e a atribuir prémios.
Ambos os organismos, a Censura e o Fundo, tinham uma atuação complementar, com critérios de um moralismo estrito, mas vagamente definido na lei e, portanto, alvo de sucessivas adaptações e reinterpretações ao longo dos anos. Os membros destas comissões eram nomeados diretamente pelo chefe do governo, veiculando assim a estratégia de informação do Estado.
Além da censura aos filmes estrangeiros, que isolava o público português do resto do mundo, o maior dano terá sido aquele que foi infligido à cinematografia nacional, que se viu severamente amputada nas suas possibilidades de desenvolvimento. Vários filmes foram proibidos e muitos projetos abortados previamente. Este artigo procurará mostrar como a política de Estado logrou manter o país numa grande asfixia cultural.
Tensões entre Marte e Vénus: reflexões sobre a censura ao amor e à violência na «primavera marcelista» é um estudo apresentado por Ana Bela Mora. Através do estudo dos mecanismos da censura impostos em Portugal ao cinema, sobretudo a longas‑metragens estrangeiras mas também nacionais, durante os primeiros anos da governação de Marcello Caetano, pretende‑se investigar os critérios da Comissão de Censura em relação ao modo como eram representados o amor e a violência.
Na presidência do Conselho de Ministros, Salazar foi substituído por Marcello Caetano em setembro de 1968. A partir desse momento, muitos acalentaram esperanças de que uma maior abertura política pudesse conduzir a uma mudança de regime, no qual a censura deixasse de existir. Nesses primeiros anos, sensivelmente de 1969 a 1971, ainda se acreditou nessa perspetiva de mudança que, posteriormente, veio a revelar‑se um logro.
De que forma foi feita a censura ao amor e à violência no cinema nesses primeiros tempos de governação? Será que houve uma ligeira abertura nas mentalidades ou tudo permaneceu exatamente tudo como sempre esteve? Estas perguntas remetem para o estudo das mentalidades e da história da vida privada, que será a perspetiva adotada no nosso estudo, podendo ajudar a perceber o contexto cultural e psicológico da época.
De facto, o estudo de Eros e Thanatos revela‑se um campo de análise privilegiado para a observação das formas de gerir as pulsões contraditórias e, simultaneamente, complementares que existem no ser humano daquele período da história portuguesa.
No estudo do amor e da violência, torna‑se necessário separar campos distintos de análise para melhor compreender de que modo essas duas pulsões se inter‑relacionam. Por esse motivo, este binómio será analisado partindo da identidade pessoal, nunca esquecendo as relações que esta estabelece com as identidades coletivas e a partir daí tentaremos perceber o modo como o ser humano se relacionava consigo mesmo e com os outros na «primavera» marcelista.
Do Minho a Timor somos todos... pássaros de asas cortadas, Maria do Carmo Piçarra visa uma análise crítica do memorial fílmico do colonialismo português através das imagens censuradas pelo Estado Novo, olho para «visões» alinhadas com a retórica do regime e apresentadas em Feitiço do Império (1940) e Chaimite (1953), de António Lopes Ribeiro e Jorge Brum do Canto, respetivamente, e para as visões disruptivas e proibidas pela Censura de Manuel Faria de Almeida e Joaquim Lopes Barbosa, mostradas em Catembe (1965) e Deixem‑me ao menos subir às palmeiras… (1972).
Começo por contextualizar o surgimento da censura após a revolução de maio de 1926, particularizando o modo como se aplicou ao cinema e, ideologicamente, foi integrada, como um instrumento da «política do espírito». Identifico, depois, quais as principais orientações com base nas quais os censores «cortaram asas» aos realizadores e descrevo a importância dada ao cinema para projetar a nação no seu «modo português de estar no mundo» – ou seja, nas colónias. Finalmente proponho uma síntese das mudanças no modelo colonial português antes de proceder à análise crítica dos filmes referidos e das representações que propõem.
A projeção nacional através de imagens aprovadas pela Censura, ou promovidas por via dos apoios estatais à produção cinematográfica pelo Fundo do Cinema Nacional (FCN), orientou o olhar dos espectadores e fixou um memorial fílmico colonial baseado num discurso identitário nacional, coletivo, que se impôs a cada pessoa para a formação da sua identidade individual.
Analiso o «homem imaginado» pelos filmes de regime e faço uma proposta de leitura das imagens censuradas. Complemento a abordagem a este memorial fílmico colonial com um olhar crítico sobre dois filmes proibidos pela Censura e que não existiram durante muito tempo – o tempo que permaneceram sem serem projetados.
Em “Saídas de emergência: teatro impedido e as suas deslocações durante o Estado Novo de Salazar (1933-1974) Graça Santos faz uma rápida apresentação dos condicionalismos específicos colocados aos artistas pelo salazarismo, bem como os seus efeitos sobre a vida teatral portuguesa e evoca também as escapatórias utilizadas para levar os textos às salas de espetáculos. Face a um poder reacionário que promove o imobilismo, os artistas debatem-se entre censura e propaganda dispondo de um espaço de criação muito limitado. Particularmente vigiada, o teatro português recorreu a todas as brechas para inventar novos horizontes. Veremos de que forma os artistas aproveitavam para respirar no estrangeiro. Neste capítulo aborda-se em particular as peças de José Régio (Jacob e o Anjo, 1952) e de Luís Francisco Rebello (O dia seguinte, 1953), que só puderam ser apresentadas em Paris, por terem sido proscritas ou adiadas nos teatros em Portugal. Neste artigo, será também evocado O Teatro Moderno de Lisboa (TML), presente no festival de teatro das Nações em 1962 e onde o encenador ficou em Paris para seguir o curso da Universidade do Teatro das Nações.
A censura portuguesa à companhia de Maria de la Costa: aprovações e reprovações é um estudo de Miriele Abreu sobre a Companhia Maria Della Costa (1948‑1974), anteriormente chamada de Teatro Popular de Arte, que teve um importante papel na consolidação do teatro moderno brasileiro. O presente estudo analisará duas peças trazidas pela companhia a Portugal: A Respeitosa (1957) de Jean‑Paul Sartre, e A Alma Boa de Setsuan (1960), de Bertolt Brecht. Os processos encontrados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), em Lisboa, serão essenciais para a análise dos cortes efetuados pela Comissão de Censura do Estado Novo português, que era comandado por António de Oliveira Salazar.
As diversas crises atravessadas pelo Estado Novo salazarista entre 1958 e 1962 resultaram em um endurecimento
do sistema político, que foi sentido entre as companhias teatrais portuguesas e, igualmente, pela Companhia Maria Della Costa. O intuito deste artigo será a tentativa de compreensão de alguns cortes efetuados e de pareceres específicos dos vogais da Comissão de Censura portuguesa.
Ana Cabrera
Monte da Charneca, julho de 2012
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