Disparates do Mundo (1.º capítulo)

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I PARTE: O HOMEM FOI PRIVADO DA SUA HABITAÇÃO

 

I. O ERRO DO ESTILO MEDICINAL

 

 

As obras contemporâneas de investigação sociológica têm um formato bem definido. Regra geral, começam por apresentar uma análise, acompanhada de estatísticas, tabelas da população, a diminuição da criminalidade nas comunidades de congregacionalistas, o aumento da histeria entre os polícias, e outros factos do mesmo calibre; e concluem com um capítulo que tem geralmente o título de «Remédios». Ora, é quase inteiramente devido a este método cuidadoso, sólido e científico que nunca é possível identificar os «Remédios». Porque este esquema de investigação de estilo medicinal é um disparate; é o primeiro grande disparate da sociologia. Chama-se a isto identificar a doença antes de propor a terapia; acontece porém que, em razão da própria definição e dignidade do homem, nas questões sociais, temos de propor a terapia antes de identificarmos a doença.

A falácia é uma das cinquenta que resultam da fúria moderna pelas metáforas biológicas ou corpóreas. Dá tanto jeito falar do Organismo Social como falar do Leão Britânico[1]; acontece que a Grã-Bretanha não é, nem um organismo, nem é um leão. A partir do momento em que começamos a conferir à nação a unidade e a simplicidade de um animal, começamos a sair dos carretos; não é pelo facto de os homens serem bípedes que cinquenta homens são uma centopeia. Foi isto que deu origem, por exemplo, ao hiante absurdo que consiste em se falar constantemente em «nações jovens» e «nações moribundas», como se uma nação tivesse um tempo de vida fixo e físico. Assim, há quem diga que a Espanha entrou num período de declínio senil – que é como quem diz que começaram a cair os dentes à Espanha; ou que o Canadá não tarda a produzir uma literatura – que é o mesmo que dizer que, um dia destes, o Canadá vai deixar crescer o bigode. As nações são constituídas por pessoas; e pode muito bem acontecer que a primeira geração de uma nação seja decrépita e a décima milésima extremamente vigorosa. É esta mesma falácia que cometem aqueles que vêem na ampliação dos territórios nacionais um simples aumento em sabedoria e estatura, e um acréscimo nos favores de Deus e dos homens. Com efeito, estas pessoas nem chegam a alcançar a subtileza da comparação com o corpo humano; pois não querem saber se o império estará a crescer em altura como um adolescente ou apenas a engordar como um velho. Contudo, o pior caso dos erros que resultam desta moda das comparações físicas é aquele de que estamos a falar: o hábito de descrever exaustivamente um problema social, propondo a seguir um medicamento social para o mesmo.

Ora bem, é um facto que, nos casos de quebra física, começamos por falar da doença. Mas temos uma excelente razão para o fazer; com efeito, embora possamos ter dúvidas sobre a forma como se deu a referida quebra física, não temos dúvida nenhuma sobre a forma da correspondente recuperação. Médico nenhum se lembra de propor um novo tipo de homem, com uma nova disposição dos olhos ou dos braços. É certo que, por razões imperiosas, o hospital poderá mandar um homem para casa com uma perna a menos; mas não lhe ocorre (num arroubo de criatividade) enviar o mesmo homem para casa com uma perna a mais. A medicina contenta-se com o corpo humano normal, e a única coisa que lhe interessa é restabelecê-lo.

Mas as ciências sociais estão longe de se contentar com a alma humana normal; elas têm à venda uma série de almas imaginárias. Assim, o idealista dirá: «Estou farto de ser puritano; a partir de agora, vou ser pagão»; ou então: «Do lado de lá deste negro período de individualismo, avisto o luminoso paraíso do colectivismo.» Ora, nos males do corpo não encontramos este género de discordâncias relativamente ao ideal; o paciente poderá não querer tomar quinino, mas quer de certeza recuperar a saúde. Ninguém se lembra de dizer: «Estou farto desta dor de cabeça; dêem-me uma dor de dentes»; ou então: «O único remédio para esta gripe russa é um sarampo alemão»; ou ainda: «Do lado de lá deste negro período de catarro, avisto o luminoso paraíso do reumatismo.» Pelo contrário, a grande dificuldade dos nossos problemas públicos reside no facto de algumas pessoas pretenderem recorrer a remédios que, para outras pessoas, são males ainda maiores; proporem como estados de saúde situações que outros designariam decididamente por estados de doença. O Sr. Belloc[2] observou certa vez que a ideia de propriedade lhe era tão cara como os dentes que tinha na boca; já para o Sr. Bernard Shaw, a propriedade não é um dente, mas uma dor de dentes. Lord Milner[3] tentou sinceramente introduzir a eficácia germânica neste país; muitos de nós, porém, preferíamos o sarampo alemão. O Dr. Saleeby[4] gostaria honestamente de contrair a eugenia; por mim, preferia contrair reumatismo.

E este é o facto mais notório e o facto dominante da moderna discussão das questões sociais: o facto de a controvérsia não dizer respeito apenas às dificuldades, mas também aos objectivos. Estamos todos de acordo acerca do mal; é relativamente à definição do bem que estamos dispostos a arrancar os olhos uns aos outros. Todos reconhecemos que uma aristocracia indolente é um mal; mas estamos longe de afirmar unanimemente que uma aristocracia activa seria um bem. Todos nos sentimos irritados com os sacerdotes ímpios; mas alguns de nós sentiríamos profunda aversão se deparássemos com um sacerdote verdadeiramente pio. Toda a gente se indigna com a circunstância de termos um exército fraco, incluindo as pessoas que se indignariam ainda mais se o nosso exército fosse forte. A questão da sociedade é exactamente o oposto da questão da saúde. Diversamente dos médicos, nós não estamos em desacordo acerca da natureza da doença, concordando embora acerca da natureza da saúde; pelo contrário, todos nós concordamos que a Inglaterra está doente, mas aquilo a que metade de nós chamaria um estado de saúde pujante do nosso país repugnaria à outra metade. Os insultos públicos são de tal maneira proeminentes e pestilentos, que arrastam as almas generosas numa unanimidade fictícia; esquecemos que, embora estejamos de acordo quanto aos insultos, discordamos profundamente em matéria de elogios. O Sr. Cadbury e eu não temos dificuldade em concordar sobre o que é um pub inaceitável; mas teríamos uma lamentável altercação se nos encontrássemos diante de um pub aceitável.

Defendo, pois, que o método sociológico habitual – começar por dissecar a pobreza abjecta ou por catalogar a prostituição – é perfeitamente inútil. Ninguém aprecia a pobreza abjecta; o problema surge quando começamos a discutir a pobreza independente e digna. Ninguém aprecia a prostituição; mas nem todos gostamos da pureza. A única maneira de discutirmos os males sociais é passarmos imediatamente ao ideal social. Todos conseguimos identificar a loucura nacional; mas o que é a sanidade nacional? Dei a este livro o título de Disparates do mundo, e não é difícil identificar o conteúdo do mesmo. Pois o grande despropósito do mundo consiste em não perguntarmos qual é o propósito.


 

II. PRECISA-SE: UM HOMEM QUE NÃO SEJA PRAGMÁTICO

 

 

Há uma piada filosófica muito conhecida que pretende tipificar a inutilidade das intermináveis discussões dos filósofos; refiro-me à piada que consiste em perguntar o que nasceu primeiro, se o ovo ou a galinha. Não estou certo de que, adequadamente respondida, se trate de uma pergunta tão fútil como parece. Mas não me interessa agora entrar num daqueles profundos debates metafísicos e teológicos do género da discussão sobre o ovo e a galinha – que é um exemplo frívolo mas muito adequado dos mesmos. Os materialistas evolutivos são adequadamente representados na visão de que todas as coisas têm a sua origem num ovo, num gérmen oval impreciso e monstruoso, que se pôs a si próprio por acidente. A outra escola de pensamento, a escola sobrenatural à qual eu próprio adiro, poderá ser tipificada pela tese de que este mundo redondo que habitamos mais não é do que um ovo chocado por uma ave sagrada e não gerada, a pomba mística dos profetas. Mas é para funções bastante mais humildes que faço aqui apelo ao tremendo poder desta distinção. Esteja ou não no começo da nossa cadeia mental, é absolutamente necessário que a ave se encontre no termo da referida cadeia. A ave é aquilo para que se aponta – não com uma arma, mas com uma varinha que dá vida. O que é essencial a um raciocínio correcto é não considerar que o ovo e a ave são idênticas ocorrências cósmicas, que recorrem eternamente de forma alternada; que são um simples padrão fixo. Pois um é o meio e o outro o fim; e pertencem a mundos mentais distintos. Esquecendo por agora as complicações do pequeno-almoço, em sentido elementar, o ovo só existe para produzir a galinha; mas a galinha não existe apenas para produzir mais um ovo – também pode existir para se divertir, para louvar a Deus, ou até para dar ideias a um dramaturgo francês. Sendo uma vida consciente, a galinha tem, ou pode ter, valor em si mesma. Ora, a política moderna é prenhe num esquecimento ruidoso: o esquecimento de que o objectivo de todas as complexidades e de todos os compromissos é precisamente a produção desta vida feliz e consciente. Estamos constantemente a falar de homens úteis e de instituições funcionais; ou seja, a única coisa que nos interessa nas galinhas é o facto de serem capazes de pôr ovos. Em vez de tentarmos produzir uma ave ideal – a águia de Zeus, o Cisne de Avon[5], ou o que cada um preferir –, limitamo-nos a falar do processo e do embrião. Ora, o processo em si mesmo, divorciado do seu objectivo divino, torna-se duvidoso e até mórbido: o veneno pode entrar em qualquer embrião, e a nossa política está cheia de ovos podres.

O idealismo consiste apenas em considerar todas as coisas do ponto de vista da respectiva essência prática. O idealismo significa apenas que temos de olhar para um atiçador como um instrumento destinado a atiçar, antes de discutirmos a sua utilidade como arma para espancar as mulheres; que temos de perguntar se um ovo serve para a criação de aves antes de decidirmos que não serve para a gestão política. Mas sei perfeitamente que este interesse de base nas questões teóricas (que mais não é do que a busca do fim) expõe uma pessoa à acusação barata de perder tempo a tocar harpa enquanto Roma está a arder. Há uma escola – de que Lord Rosebery[6] é lídimo representante – que tem procurado substituir os ideais morais e sociais que foram até agora a motivação da acção política por uma coerência ou completude geral do sistema social, que foi apelidada de «eficácia». Não estou bem certo de qual é a doutrina secreta desta seita na matéria; mas, tanto quanto consigo compreendê-la, a «eficácia» significa que temos de saber tudo acerca de uma máquina, excepto aquilo para que ela serve. Surgiu no nosso tempo uma moda muito peculiar: a ideia de que, quando as coisas estão a correr muito mal, do que nós precisamos é de um homem pragmático. Ora, é bastante mais correcto afirmar que, quando as coisas estão a correr muito mal, do que nós precisamos é de um homem que não seja pragmático; precisamos, pelo menos, de um teórico. Um homem pragmático é um homem que só conhece a prática do dia-a-dia, o modo como as coisas habitualmente funcionam. Quando as coisas não funcionam, temos de recorrer ao pensador, ao homem que tem algum conhecimento da razão pela qual elas funcionam. É má ideia tocar harpa enquanto Roma está a arder; mas é uma excelente ideia estudar hidráulica enquanto Roma está a arder.

Nessa altura, é necessário abandonar o agnosticismo diário e procurar rerum cognoscere causas. Quando um aeroplano tem uma leve indisposição, é natural que um habilidoso consiga repará-lo; mas quando se trata de uma doença grave, é bastante mais provável que seja necessário ir buscar um velho mestre distraído e de cabelos no ar a uma universidade ou a um laboratório, e pedir-lhe que analise o defeito. E, quanto mais complicado for o problema, mais distraído será o teórico capaz de lidar com ele, e mais cabelos brancos terá; em alguns casos, é muito possível que seja necessário recorrer aos serviços do homem (provavelmente louco) que inventou a nave para saber o que ela tem. A «eficácia» é fútil pela mesma razão por que os homens fortes, a vontade de poder e o super-homem são fúteis: porque só lidam com as acções depois de elas terem sido feitas, porque não possuem uma filosofia dos incidentes antes de eles acontecerem; por essa razão, não têm hipótese de escolha. Um acto só pode ser bem ou mal sucedido depois de ter sido concluído; para ser iniciado, tem de ser bom ou mau em abstracto. Ninguém apoia um vencedor; porque, enquanto está ele a ser apoiado, não é vencedor. Ninguém luta do lado dos vencedores; luta-se para se ver quem serão os vencedores. Se uma operação teve lugar, tal operação foi eficaz. Se um homem foi assassinado, o assassínio foi eficaz. Um sol tropical é tão eficaz na promoção da moleza nas pessoas como um capataz do Lancashire na promoção da produtividade. Maeterlinck[7] é tão eficaz a encher um homem de estranhos tremores espirituais como os Srs. Crosse e Blackwell[8] a encherem-no de compota. Mas tudo depende daquilo de que a pessoa quer a encham. Sendo um céptico moderno, é bem provável que Lord Rosebery prefira os tremores espirituais; sendo cristão ortodoxo, eu prefiro a compota. Mas ambos são eficientes depois de terem produzido o seu efeito; e não são eficientes enquanto não o tiverem produzido. Um homem que se dedique muito a pensar no sucesso acabará por ser um sentimentalão indolente, porque estará sempre a olhar para o passado. Se apenas lhe interessa a vitória, chegará sempre atrasado ao campo de batalha. Ao homem de acção apenas interessa o idealismo.

No contexto das dificuldades pelas quais a Inglaterra passa hoje, esta definição do ideal é uma questão muito mais premente e muito mais prática do que quaisquer planos ou propostas imediatas. Porque o actual caos deve-se ao esquecimento geral daquilo que era o objectivo inicial dos homens. Um homem não exige aquilo que quer, mas aquilo que lhe parece que pode conseguir; as pessoas não tardam a esquecer-se do que ele inicialmente queria e, após uma carreira política vigorosa e bem sucedida, ele próprio se esquece do que queria. O resultado é um extravagante tumulto de soluções de compromisso, um pandemónio de pis-aller. Ora, este género de versatilidade não impede apenas a consistência heróica, impede também um verdadeiro acordo prático. Uma pessoa só consegue identificar a meia distância entre dois pontos se estes dois pontos estiverem imóveis; podemos chegar a um acordo entre dois litigantes que não conseguem alcançar o que desejam, mas só poderemos chegar a esse acordo se eles nos disserem o que desejam. O dono de um restaurante prefere certamente que os seus clientes lhe digam claramente o que querem comer – ainda que seja guisado de íbis ou bifes de elefante – do que se deixem ficar sentados à mesa com a cabeça apoiada nas mãos, entretidos a calcular a quantidade de comida que haverá dentro do restaurante. Quase todos tivemos já de sofrer a presença daquelas senhoras que, devido a um altruísmo perverso, dão mais trabalho que qualquer egoísta: que solicitam insistentemente a parte do frango de que ninguém gosta e atropelam toda a gente para se sentarem na cadeira mais incómoda. Quase todos participámos em festas e excursões onde fervilhava este género de modéstia. É por razões bastante mais básicas que as destas mulheres admiráveis que os nossos políticos – que são homens pragmáticos – mantêm as coisas no mesmo estado de confusão, devido ao mesmo tipo de dúvida sobre as suas reais necessidades. Nada contribui tanto para evitar um acordo como um emaranhado de pequenas rendições. Sentimo-nos desorientados com tantos políticos que se mostram favoráveis a um sistema educativo secularizado, mas que consideram inútil lutar por ele; que desejam impor a total proibição do consumo de bebidas alcoólicas, mas têm a certeza de que não devem exigi-la; que lamentam o ensino obrigatório, mas o mantêm com resignação; e que acham que a lei devia abrir a posse da terra aos camponeses, pelo que votam no contrário. É este oportunismo atordoado e confuso que impede que as coisas se façam. Se os nossos estadistas fossem visionários, talvez se conseguisse fazer alguma coisa na prática; se exigirmos alguma coisa em abstracto, talvez consigamos alguma coisa em concreto. Mas, tal como as coisas estão, não só se torna impossível conseguirmos o que queremos, como se torna impossível conseguirmos sequer uma parte disso, porque ninguém consegue assinalar o que queremos como que num mapa. Desapareceu por completo aquele estilo preciso, duro até, que presidia às negociações. Esquecemo-nos de que, para chegar a uma solução «de compromisso», temos, entre outras coisas, de tomar essa atitude rígida e sonora que consiste em nos «comprometermos». A moderação não é uma coisa vaga; é tão definida como a perfeição. O ponto intermédio é tão fixo como os extremos.

Se um pirata me obrigar a avançar por uma prancha que termina num mergulho em alto mar, é em vão que me propõe, como solução de compromisso, que eu percorra apenas uma distância razoável. Pois é precisamente acerca da extensão de tal distância razoável que o pirata e eu discordamos. Com efeito, a prancha termina num ponto preciso; ora, o que é razoável para mim é deter-me aquém desse ponto, enquanto o que é razoável para o pirata é que eu avance para além dele. Mas esse ponto é de uma extraordinária precisão geométrica; e é tão abstracto como um dogma teológico.


 

III. OS NOVOS HIPÓCRITAS

 

 

Mas esta nebulosa cobardia política recente tornou inútil a velha prática inglesa da solução de compromisso. As pessoas começaram a sentir-se aterrorizadas com todo o tipo de melhoramentos, pelo simples facto de serem completos. A circunstância de uma pessoa conseguir o que quer, ou de se levar alguma coisa a cabo, parece-lhes utópica e revolucionária. Antigamente, uma solução de compromisso significava que meio pão era preferível a pão nenhum; para o estadista moderno, uma solução de compromisso significa que, no fundo, meio pão é preferível ao pão todo.

Como exemplo para precisar a discussão, refiro o caso das nossas eternas leis educativas. A verdade é que conseguimos inventar um novo género de hipócrita. Os hipócritas de outros tempos, como Tartufo e Pecksniff[9], eram homens cujos objectivos eram na realidade mundanos e pragmáticos, embora eles quisessem fazê-los passar por religiosos; os novos hipócritas são homens cujos objectivos são na realidade religiosos, embora eles queiram fazê-los passar por mundanos e pragmáticos. Assim, o reverendo Brown, ministro metodista, declara firmemente que os credos não lhe interessam, e que só lhe importa a educação, quando a verdade é que tem a alma repleta de um radical metodismo. Por sua vez, o reverendo Smith da Igreja de Inglaterra explica graciosamente, e à maneira de Oxford, que a única coisa que lhe interessa é a prosperidade e a eficácia das escolas, quando a verdade é que alberga dentro dele uma violenta paixão pela paróquia. Em minha opinião, estes reverendos cavalheiros têm má opinião sobre si próprios; em minha opinião, são mais piedosos do que julgam. Ao contrário do que muitos pensam, eles não eliminam a teologia por ser um erro; limitam-se a ocultá-la como se fosse um pecado. Na realidade, o Dr. Clifford tem tanto interesse na criação de um ambiente teológico como Lord Halifax; a única diferença é que o ambiente que lhe interessa é outro. Se o Dr. Clifford solicitasse, muito simplesmente, a instauração do puritanismo e Lord Halifax a do catolicismo, talvez conseguissem alguma coisa. Julgo que todos temos imaginação suficiente para reconhecer a dignidade de outra religião, como o islão ou o culto de Apolo. Eu estou perfeitamente disposto a respeitar a fé dos outros; mas é pedir muito exigirem-me que lhes respeite as dúvidas, as hesitações, as ficções mundanas, as invenções e as discussões políticas. A maior parte dos não conformistas[10] com sensibilidade para a história de Inglaterra é capaz de ver no arcebispo da Cantuária, enquanto tal, uma figura poética e nacional; só ficam irritados – e com razão – quando ele faz de racional estadista britânico. A maioria dos anglicanos que apreciam a coragem e a simplicidade está disposta a admirar o Dr. Clifford enquanto ministro da igreja baptista; é quando ele diz que é um simples cidadão que ninguém consegue acreditar nele.

Mas a situação é ainda mais curiosa. Pois o argumento que era usado a favor da imprecisão doutrinal era o de que pelo menos nos impedia de ser fanáticos. A verdade porém é que nem isso. Pelo contrário, tal imprecisão cria e renova o fanatismo, e com uma força que lhe é bastante peculiar. E isto é, a um tempo, tão estranho e tão verdadeiro, que solicito ao leitor um pouco mais de atenção ao caso.

Há pessoas que não apreciam a palavra «dogma». Felizmente, essas pessoas são livres e têm alternativas. Há duas coisas, e duas coisas apenas, capazes de ocupar o espírito humano: o dogma e o preconceito. A Idade Média era um período racional, um período doutrinário; a nossa época é, na melhor das hipóteses, uma época poética, uma época de preconceitos. Uma doutrina é um ponto definido; um preconceito é uma orientação. Dizer que se podem comer vacas mas não se podem comer pessoas é uma afirmação doutrinal. Dizer que se deve comer o mínimo possível seja do que for é um preconceito; a que por vezes também se chama ideal. Ora, uma orientação é sempre muito mais excêntrica que um plano. Eu prefiro que me dêem um mapa, por muito arcaico que seja, da estrada para Brighton, do que me recomendem genericamente que volte à esquerda. As linhas rectas, se não forem paralelas, acabam por se encontrar; já as curvas podem recuar interminavelmente. Um par de namorados pode passear ao longo da fronteira entre a França e a Alemanha, um do lado e outro do outro, enquanto não lhes ordenarem vagamente que não se aproximem um do outro. E este exemplo é uma parábola que descreve com grande rigor a forma como as indicações vagas distanciam e separam os homens, como se os mergulhassem numa espessa neblina.

É verdade que um credo une os homens; mas uma diferença de credo também os une, desde que seja uma diferença clara. Os limites unem os homens. É bem provável que um muçulmano magnânimo e um cavaleiro cruzado se sentissem mais próximos um do outro, pelo facto de ambos aderirem a dogmas, do que quaisquer dois agnósticos apátridas que se sentam nos bancos da capela do Sr. Campbell. «Eu afirmo que Deus é Uno» e «Eu afirmo que Deus é Uno mas também é Trino» pode ser o começo de uma bela e conflituosa amizade. Mas o nosso tempo transforma estas convicções em tendências, recomendando ao defensor da Trindade que opte pela multiplicidade enquanto tal (dado que tem essa «inclinação»), e este acaba por inventar uma Trindade de trezentas e trinta e três pessoas. Entretanto, transforma o muçulmano num monista, o que constitui uma temível queda intelectual, e obriga essa pessoa, que era sã de mente, a admitir, não só que há um só Deus, mas que não há mais ninguém. E, depois de cada um deles ter passado um longo período a seguir o brilho do próprio nariz (como o Dong[11]), voltam à cena, o cristão como politeísta e o muçulmano como panegoísta, ambos loucos e muito mais incapazes de se compreenderem mutuamente do que quando se conheceram.

É precisamente isto que se passa no campo político. A nossa imprecisão política não aproxima os homens, divide-os. Quando o céu está limpo, um homem não tem dificuldade em caminhar à beira de um precipício; mas quando está nevoeiro nem sequer se abeira dele. Assim, um conservador poderá aproximar-se do socialismo se souber o que este é; mas, se lhe disserem que o socialismo é um espírito, uma atmosfera sublime, uma nobre e indefinível tendência, nesse caso, mantém-se à distância, e faz muito bem. A uma afirmação pode-se responder com um argumento; mas a uma tendência só se pode responder com uma saudável intolerância. Disseram-me que o método de luta corpo-a-corpo dos japoneses não consiste em atacar subitamente, mas em ceder subitamente. Esta é uma das muitas razões que me levam a não gostar da civilização japonesa; usar a rendição como arma é uma das piores componentes do espírito do Oriente. Não há certamente força alguma tão difícil de combater como a força que é fácil de conquistar: a força que cede e depois regressa. Tal é a força de um grande preconceito impessoal, a força que possui o mundo moderno em tantos domínios. E contra esta força não há arma possível, à excepção de uma rígida sanidade de aço, da decisão de não prestar atenção a modas e de não se deixar infectar por doenças.

Em suma, a fé humana racional tem de se armar de preconceitos num tempo de preconceitos, da mesma maneira que se armou de lógica num tempo de lógica. Mas a diferença entre estes dois métodos mentais é profunda e inequívoca. E o essencial desta diferença é o seguinte: os preconceitos são divergentes, enquanto os credos estão sempre em colisão. Os crentes chocam uns com os outros, enquanto os preconceituosos se afastam uns dos outros. Um credo é uma coisa colectiva, e até os pecados correspondentes são sociáveis. Um preconceito é uma coisa privada, e até a correspondente tolerância é misantrópica. É o que se passa com as divisões que nos separam: não se cruzam. O jornal dos conservadores e o jornal dos radicais não respondem um ao outro: ignoram-se um ao outro. A controvérsia genuína, uma controvérsia séria mantida na presença de um público comum, tornou-se hoje uma coisa muito rara. Porque o homem que a ela se dedica com sinceridade é acima de tudo um bom ouvinte. O verdadeiro entusiasta nunca interrompe: ouve os argumentos do inimigo com a mesma atenção com que um espião ouve as combinações do inimigo. Mas, se o leitor tentar manter uma discussão com um jornal que defenda ideias políticas contrárias às suas, verificará que não há meio termo entre a violência e a fuga; que a única resposta que recebe são insultos ou silêncios. O moderno director está proibido de ter aquele ouvido atento que acompanha a língua honesta. Pode ser surdo e silencioso – e a isso chama-se dignidade; ou ser surdo e ruidoso – e a isso chama-se jornalismo contundente. Em nenhum destes casos há controvérsia; porque o objectivo dos actuais combatentes partidários é disparar de fora do alcance do tiro.

O único remédio lógico para tudo isto é a afirmação de um ideal humano. Ao tratar deste assunto, vou esforçar-me por ser o menos transcendental e o mais consistente com a razão que puder; bastará dizer que, a não ser que disponhamos de uma doutrina sobre um homem divino, todos os abusos serão desculpáveis, dado que a evolução pode transformá-los em usos. O cientista plutocrata não terá dificuldade nenhuma em defender que a humanidade se adaptará a quaisquer condições que nesta altura consideramos perversas. Os tiranos antigos invocavam o passado; os novos tiranos invocarão o futuro. A evolução produziu o caracol e o mocho; a evolução também será capaz de produzir um operário que precisa de tão pouco espaço como um caracol e de tão pouca luz como um mocho. O empregador já não se incomodará em mandar o negro trabalhar para baixo da terra, porque o negro não tardará em se transformar num animal subterrâneo, como por exemplo uma toupeira. Já não se incomodará em mandar o mergulhador conter a respiração no fundo do mar, porque o mergulhador não tardará em se transformar num animal das profundezas marinhas. Os homens não precisam de se incomodar a alterar as condições do meio, porque as condições do meio não tardarão em alterar os homens. Pode-se bater na cabeça até ela ficar reduzida ao tamanho do chapéu. Não é preciso quebrar os grilhões do escravo; basta quebrar o escravo até ele se esquecer dos grilhões. A única reacção adequada a toda esta plausível argumentação moderna em favor da opressão é que há um ideal humano permanente, que não pode ser baralhado nem destruído. O homem mais importante do mundo é o homem perfeito que não existe. A religião cristã exprimiu de forma contundente a radical sanidade do Homem, diz a Escritura, que julgará a verdade encarnada e humana. A nossa vida e as nossas leis não são julgadas pela superioridade divina, mas apenas pela perfeição humana. A medida é o homem, diz Aristóteles; e será o Filho do Homem, diz a Escritura, a julgar os vivos e os mortos.

Assim, pois, não é a doutrina que causa dissensões; pelo contrário, só a doutrina pode curar as nossas dissensões. Mas é preciso saber, ainda que em termos aproximados, que forma abstracta e ideal de Estado e de família saciará a fome humana; e isto, independentemente de sermos ou não capazes de a alcançar por completo. Mas, quando nos pomos a perguntar quais são as necessidades do homem normal, qual é o desejo de todas as nações, o que é a casa ideal, ou a estrada ideal, ou a legislação, ou a república, ou a realeza ou o sacerdócio ideal, somos confrontados com uma estranha e irritante dificuldade, que é peculiar ao nosso tempo; temos portanto de fazer aqui uma paragem temporária, a fim de analisarmos esse obstáculo.

 


[1] O leão é um dos símbolos heráldicos da Grã-Bretanha.

As notas a este texto são da tradutora, e visam esclarecer, entre as muitas referências que Chesterton vai fazendo, aquelas que serão menos familiares ao leitor contemporâneo.

[2] Hilaire Belloc (1870-1953), escritor e polemista católico inglês, que também foi amigo de Chesterton; os dois apologetas constituíram uma dupla que ficou conhecida pela humorística designação de Chesterbelloc.

[3] Alfred Milner (1854-1925), aristocrata e político britânico de relevo.

[4] Caleb Williams Saleeby (1878-1940), médico, escritor e jornalista inglês, defensor apaixonado da eugenia.

[5] Designação dada pelo dramaturgo inglês Ben Jonson a William Shakespeare.

[6] Archibald Primrose (1847-1929), conde de Rosebery, político inglês que ocupou vários cargos no final do século XIX, entre eles o de primeiro-ministro. Lord Rosebery casar-se-ia com Hannah de Rothschild, a única filha e herdeira de toda a fortuna da família Rothschild.

[7] Maurice Maeterlinck (1862-1949), ensaísta e dramaturgo belga da corrente simbolista, que tratava frequentemente dos temas da morte e do sentido da vida. Para o final da sua carreira, escreveu várias obras de ciências naturais, entre elas La vie des abeilles (1901), a que Chesterton faz alusão mais aidante; foi acusado de plágio na sua produção científica.

[8] Marca de produtos alimentares, no mercado desde 1706, que em 1830 foi comprada por Edmund Crosse e Thomas Blackwell.

[9] Personagem de Martin Chuzzlewit, de Charles Dickens.

[10] Movimento religioso de protesto (não conformidade) com a Igreja de Inglaterra, surgido em meados do século XVII.

[11] Personagem de um poema absurdo de Edward Lear.

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