Auto-de-Fé (1.º capítulo)
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I
DA FÉ NO GALILEU
À FÉ DE GALILEU
Senhor padre Gonçalo Portocarrero de Almada, o papa Bento XVI
declarou que, a partir de 11 de Outubro de 2012 até 24 de Novembro de
2013, a Igreja celebra o Ano da Fé. Certamente que esta preocupação do
papa não é casual e tem particular acutilância no continente europeu. É
uma evidência que, na Europa, a fé escasseia e que essa tem sido uma das
preocupações do papa; podemos mesmo dizer que não só a fé escasseia
como os cristãos diminuem na sua prática religiosa e também na sua fé. A
Europa recusa mesmo a herança cristã europeia, apesar de a marca
judaico-cristã da raiz deste continente ser inegável. Será esse
reencontro um objectivo do papa ao convocar um Ano da Fé?
Sim, acho que o papa, logo desde o início do seu pontificado, deu
a entender muito claramente que, em vez de se ocupar com questões que
terão a sua importância mas que não são fundamentais, quer chamar a
nossa atenção para aquilo que é essencial. E, por isso mesmo, a primeira
das suas encíclicas é sobre a caridade (Deus caritas est, 2005) depois
escreveu também sobre a esperança (Spe Salvi, 2007) e agora chamou a
nossa atenção para a fé. Há uma intervenção muito interessante do papa
Bento XVI, em Santiago de Compostela, na qual, em resposta à pergunta
sobre a grande contribuição que a Igreja tem para dar ao mundo e em
especial à Europa, o papa disse: «Deus». Aquilo que a Igreja tem que dar
a conhecer, aquilo que a Igreja tem a manifestar, aquilo que a Igreja
tem que dizer, aquilo que a Igreja tem de próprio e que deve transmitir é
Deus. A fé é exactamente isso, a fé é o conhecimento de Deus, é o
conhecimento de Deus tal como Deus quis que nós o conhecêssemos, através
do seu filho, Jesus Cristo.
No documento sobre a fé, Bento XVI sublinha a necessidade de uma
nova evangelização para com os baptizados que deixaram de ir à Igreja.
Em Portugal é um fenómeno frequente e significativo. Restam poucos
baptizados que sigam as práticas tradicionais da Igreja e quase diria
que tudo se reduz a três momentos: baptizado, casamento e funeral.
O papa considera esses baptizados uma prioridade. Porquê?
É necessário que todos os cristãos tenham consciência de que ser
cristão é estar comprometido – e estar comprometido com um projecto
concreto. Não apenas com uma ideologia, não apenas com uma determinada
visão do mundo, porque há pessoas que têm essa noção, que ter fé é como
se alguém dissesse «eu subscrevo esta teoria, eu aceito esta
interpretação ou esta cosmovisão». A fé não é isso.
Então o que é a fé?
A fé é isso, mas é muito mais do que isso. Não é alguma coisa,
mas alguém: Cristo. É aceitar a sua revelação, mas é aceitar também o
compromisso que essa revelação implica para cada um de nós. E que exige,
de facto, uma entrega total. Jesus Cristo não procurava apenas, por
assim dizer, a adesão intelectual, não procurava apenas pessoas que
aceitassem os seus postulados, os seus axiomas, mas pessoas que se
comprometessem com a sua vida a realizar aquele programa, que Ele trazia
para elas, mas também para o mundo inteiro. E, portanto, ser cristão é
ser isso, é ser uma pessoa comprometida com Cristo, na Igreja, para
realizar aquilo que Ele veio trazer ao mundo: a salvação dos homens. A
fé é exactamente a explicação desse projecto, e a realização dessa
missão.
De resto, Jesus Cristo não teve a preocupação de ter muitos
discípulos, mas antes a preocupação de que os discípulos que de facto
eram seus estivessem bem formados. Se calhar nós gostaríamos que a
Igreja tivesse milhões e milhões de fiéis. Sem dúvida alguma que é essa a
finalidade, porque em última análise a Igreja é universal, católica,
está aberta a todos os homens e não faz qualquer tipo de acepção (Act
10,34) e a todos tem algo importantíssimo, fundamental, a oferecer, que é
a salvação. Mas não devemos ceder à tentação do número, em detrimento
da qualidade, em prejuízo da autenticidade da própria fé. Mais valem
poucos cristãos, mas cristãos decididos, comprometidos, coerentes, que
estejam efectivamente disponíveis para realizar a missão da Igreja, do
que uma multidão de cristãos apáticos, de cristãos descomprometidos, de
cristãos que até, algumas vezes, se permitem a incoerência de destoar,
ou de estar em menos sintonia com a hierarquia da Igreja ou com o seu
magistério.
No entanto, olhando para a Europa, e Portugal não é excepção,
verificamos que a Igreja perdeu as elites. Até determinada época da
história europeia, as elites intelectuais eram fundamentalmente
católicas. À Igreja se devem as universidades, as bibliotecas, a cópia e
difusão dos grandes clássicos da literatura da humanidade. Os
Beneditinos e os Dominicanos fizeram dos seus mosteiros centros
difusores de cultura, e os Jesuítas, por exemplo, tiveram um papel
fundamental na alfabetização dos povos por onde passaram. A ciência e a
investigação científica, motores do progresso do mundo ocidental, à
Igreja o devem. Mas, simultaneamente, fica-se com a sensação de que a
evolução da ciência teve como consequência o recuo da fé. É fácil
constatar que a fé começa onde a ciência acaba, ou melhor ainda, para
ser mais abrangente, dizer que a fé começa onde a razão acaba. Só existe
fé onde a razão não consegue chegar e essa é a marca do nosso tempo.
Pode-se mesmo afirmar que tal se verifica desde a Revolução Francesa, e
ciência e razão ocupam o espaço fundamental fazendo recuar a fé.
Concorda com esta evidência?
Não. Não sei se foi a Igreja que perdeu as elites ou se foram as
elites que perderam a Igreja… Creio que será mais isso, ou seja, as
elites precisam mais da Igreja do que a Igreja precisa das elites.
Também por isso, de facto, Nosso Senhor não procurou, por assim dizer,
conquistar as elites. Os seus discípulos, os seus seguidores eram quase
todos gente muito normal.
São Paulo, nem por isso...
São Paulo, não – São Paulo era, de facto, um caso extraordinário.
Mas, senhor padre, São Paulo pertencia à elite da época dele.
São Paulo era da elite, era de facto um líder, era um chefe, tinha um carisma muito especial.
Mas, na verdade, não diria que é só a partir de agora que tal
acontece. Suponho que a partir da Revolução Francesa (ou, pelo menos,
mais acentuadamente aqui, em Portugal, com o liberalismo) há sem dúvida
um divórcio entre a cultura e a fé, um divórcio entre a ciência e a fé.
Depois, o positivismo veio legitimar essa emancipação, que de algum modo
era vista como salutar para o próprio pensamento, porque – dizia-se –
um pensamento que não está enfeudado a uma religião é um pensamento
livre, é um pensamento sem preconceitos, é um pensamento mais corajoso,
mais audaz e até, do ponto de vista da técnica, pode ir mais longe.
Muitas vezes a religião, concretamente a religião católica, é
vista como uma espécie de freio, um travão para o espírito humano. Mas
acho que o positivismo já está ultrapassado, já está antiquado. Hoje,
cada vez nos damos mais conta de que, se o espírito humano e a
inteligência humana não estão abertos à transcendência da fé, acabam por
se perder, acabam por se desvirtuar e até por se voltar contra o
próprio homem. De facto, o papa tem muitas vezes insistido neste aspecto
de que a fé sem a razão torna-se fanatismo e a razão sem a fé perde a
transcendência. A razão sem a fé fica diminuída, fica menos capacitada.
Uma razão sem fé, no fim de contas, é como percorrer um labirinto.
Pode-se correr muito, pode-se dar muitas voltas, mas nunca se sai do
mesmo plano. E esse plano não é capaz de nos dar as respostas às
perguntas que todos os homens fazem.
A ciência é um conhecimento estupendo, magnífico, que a Igreja,
desde o princípio, tem fomentado e procurado desenvolver, mas é um
conhecimento restrito, é um conhecimento limitado.
E quando a ciência avança em sentidos que contrariam algumas
teses fundamentais da Igreja? Quando o que está escrito na Bíblia
contraria descobertas da ciência? Então a Igreja Católica excomunga
esses cientistas, como fez no caso de Galileu. Galileu foi um caso
típico, emblemático.
Quando há uma teoria científica que contradiz uma verdade de fé
católica, das duas, uma: ou não é uma verdade científica, ou não é uma
verdade de fé. Não há nenhuma contradição possível entre a verdade
científica e a verdade revelada. Pode haver, eventualmente, alguma
oposição, alguma contradição entre aquilo que algumas pessoas supõem que
seja uma verdade científica, mas que o não é, ou então o que algumas
pessoas supõem que seja uma verdade de fé e que o não é. Sabemos que às
vezes há interpretações da própria Bíblia que são um pouco
fundamentalistas e que, por isso, não são do magistério da Igreja, a
Igreja não se identifica com elas, embora se calhar correspondam à
literalidade do texto sagrado. Como também muitas vezes há
interpretações científicas, hipóteses científicas que não contradizem a
doutrina cristã, como, por exemplo, a Teoria da Evolução em relação à
criação, muito embora certos sectores, mais apegados à interpretação
literal da Bíblia – os criacionistas –, pensem que sim. Deus pode ter
criado as espécies já diferenciadas no início, ou, pelo contrário, ter
determinado a sua evolução.
Outro exemplo: o padre Lemaître, um belga que foi catedrático e
reitor da Universidade de Lovaina e que foi grande amigo de Einstein,
com quem trocou correspondência em relação à origem do Universo, foi
quem formulou a teoria do Big Bang, que é uma hipótese, uma hipótese
aceitável e razoável. Mas não há contradição. Se há contradição,
insisto, ou é porque uma coisa foi tomada como verdade científica, não
sendo mais do que uma hipótese, ou então foi tomada por uma verdade de
fé uma coisa que não é, de facto, doutrina católica.
Então o que aconteceu com Galileu?
Galileu é uma pessoa estupenda, magnífica. Há um processo complicado…
Processo que esteve visível recentemente em Roma, numa exposição
dos mais significativos documentos dos Arquivos Secretos do Vaticano.
Em Roma, exactamente. Temos especialistas, incluindo no nosso
país, como o professor Henrique Leitão, que são grandes conhecedores do
processo de Galileu.
Eu diria que, de facto, há que distinguir a interpretação por
alguns eclesiásticos das suas teorias, mas não necessariamente pela
Igreja, porque é importante diferenciar aquilo que é o parecer da Igreja
do que pode ser a opinião, até mesmo expressa por alguns eclesiásticos
importantes, mas que não vinculam a Igreja, não a comprometem
institucionalmente.
A observação fundamental é que a Igreja não defendia o
geocentrismo por aparentemente alguns passos bíblicos, como Js 10,
12-13, aliás de interpretação difícil, o parecerem sugerir. A Igreja
defendia o geocentrismo porque toda a ciência e todos os cientistas
desde a antiguidade até ao século XVII o defendiam (com raríssimas
excepções, apresentadas como hipótese). Qualquer um de nós, se tivesse
vivido no tempo de Galileu, acharia que era uma ideia sem sentido, tanto
mais que ele nem sequer tinha a prova do que afirmava.
Por outro lado, a atitude de Galileu também merece alguns
reparos, sobretudo no que respeita a um aproveitamento menos adequado da
Sagrada Escritura. Ou seja, Galileu não conseguiu provar o que afirmou.
Ele afirmou uma coisa que é verdadeira e que era, de certo modo,
revolucionária, embora também não fosse absolutamente inédita. Já
outros, como Copérnico, tinham dado isso como possível, embora não o
tivessem afirmado, mas apenas dito que seria possível, que era um modelo
matemático, um modelo astronómico que estava em aberto. Galileu
afirma-o, já não como mera hipótese, mas como realidade científica. Mas
não tem provas e os argumentos que utiliza, como as marés, não são
científicos, são razões que não provam aquilo que ele pretende
demonstrar. E é precisamente por isso, porque ele não consegue provar
cientificamente aquilo que quer demonstrar, que tenta usar a Sagrada
Escritura em abono da sua teoria científica. Ora, isto é uma utilização
falaciosa da Escritura, que não pode ser usada para esse fim.
A Escritura não foi dada aos homens como uma explicação
científica do Universo, mas como uma manifestação do amor que Deus tem
por cada um de nós. Assim, a sua interpretação científica, o
aproveitamento do texto sagrado para um fim específico, o de uma ciência
positiva, era abusivo. Nisto tinham razão as personalidades da Igreja
quando o proibiram de o fazer, ou seja, de utilizar a Escritura para os
seus fins.
Galileu não tinha a graça necessária para interpretar a
Escritura, porque essa interpretação está confiada à Igreja, através do
seu próprio magistério. O magistério da Igreja é que interpreta a
Escritura e diz o que significam as suas passagens. Galileu quis
aproveitar-se da Bíblia, porque sabia que desse modo daria outra
projecção às suas teorias.
Depois, temos de reconhecer que houve relações menos cordiais
entre alguns cardeais e Galileu, com uma ou outra ocasião em que o
próprio Galileu não se portou muito bem. Por exemplo, foi recebido numa
ocasião pelo papa e não se sabe ao certo o que aconteceu nesse encontro,
mas pouco depois Galileu publicou um diálogo entre personagens
fictícias (mas em que facilmente se reconhece que uma delas era o papa)
no qual Galileu humilha essa personagem, ridicularizando-a nesse
diálogo. Da parte de Galileu houve também algumas atitudes de pouca
delicadeza para com o magistério da Igreja, para com o papa, que até
simpatizava com ele, e com alguns dos cardeais, etc.
Há uma coisa que é interessante dizer: é que não foi queimado
pela fogueira! Galileu nasceu, viveu e morreu católico convicto. Era um
homem de oração.
E não morreu na fogueira?
Não morreu na fogueira, morreu na cama, em paz e sossego, e sem
nenhum problema de fé. Ele pode ter tido, como outros cristãos também
tiveram ao longo da história do cristianismo, alguma dificuldade de
relacionamento com outros membros da Igreja, mas isso não afectava a sua
fé, ele não tinha nenhuma dúvida quanto à sua fé. Os seus
desentendimentos com alguns eclesiásticos não o afastaram da Igreja, nem
perturbaram a sua fé, nem a sua prática religiosa, como cristão
fervoroso que foi até à morte.
Senhor padre Gonçalo Portocarrero de Almada, voltemos à questão
da fé e da razão, uma questão muito querida ao papa Bento XVI, e que já o
era do cardeal Ratzinger. Diria que há hoje, na comunidade científica –
não propriamente em Portugal, porque estas coisas chegam sempre uns
anos depois, mas na comunidade científica mundial –, numerosos livros
saídos recentemente invertendo a questão da ciência e da fé. Parecia ser
um assunto arrumado desde Darwin e certificado com os múltiplos avanços
da ciência e resolvido para as elites. Ou seja, já não havia um choque
entre a fé e a razão, pois pura e simplesmente a razão tinha substituído
a fé. No entanto, quanto mais a ciência avança no conhecimento da
perfeição do ADN, mais cientistas teorizam que a vida não pode ser filha
de um acaso, e que não é por acaso que todas aquelas partículas se
juntam na perfeição. Verificam também que as leis da natureza se repetem
sempre, o que não pode deixar de apontar para um Deus.
É curioso, porque o discurso científico é um discurso muito
limitado – muito útil, muito necessário, mas muito limitado –, porque a
ciência explica o «como», mas não explica o «porquê». A ciência explica
como funciona o ser humano e cada vez, se calhar, conseguimos conhecer
mais pormenorizadamente o nosso organismo. Aliás, o avanço da medicina
nos últimos 100 anos é uma coisa absolutamente espantosa, ou o
conhecimento do cosmos: a dimensão do mundo é uma coisa maravilhosa!
Mas, de facto, há uma pergunta para a qual a ciência não tem
resposta: a ciência não sabe explicar nem o que é que as coisas são, nem
sabe explicar o seu porquê. Se eu perguntar a um antropólogo o que é um
ser humano, ele não me sabe dizer o que é. Um antropólogo é capaz de me
dizer como é que vivem os indígenas das tribos da Amazónia e como é que
vive um homem na Polinésia, mas não me sabe dizer o que é o ser humano.
E se eu perguntar, já não apenas o que é o ser humano, mas a razão da
sua existência e o seu sentido, então menos ainda será capaz de me
responder!
E, de facto, nós não somos capazes de nos entreter apenas com o
conhecimento descritivo da realidade. Por mais complexo e por mais
completo que seja, é sempre limitado – e por isso nós nunca nos
conseguimos abstrair destas questões, que são as questões às quais a
religião responde.
Ao contrário do que seria de supor e do que o positivismo
pretendia, e até mesmo o marxismo, ao profetizarem que a «superstição
religiosa» iria desaparecer à medida que a ciência fosse avançando, não
foi isso que aconteceu, mas exactamente o contrário. À medida que vamos
conhecendo melhor a realidade, vamo-nos dando cada vez mais conta de que
essa realidade exige uma inteligência e um ser perfeito. Coloca-nos
diante da necessidade de responder num outro nível, que é o nível
filosófico, ou metafísico, ou teológico, à questão sobre a existência de
Deus.
Entendo o que o senhor padre afirmou, mas constata-se que com as
descobertas de Darwin a religião recuou. É um facto que ninguém pode
negar. Houve mesmo quem afirmasse que não se pode mais falar de Deus
depois de Darwin.
É curioso notar que há uma certa relação entre Charles Darwin e
Galileu Galilei: enquanto este último era um cientista, com pretensões
de teólogo, aquele era formado em teologia mas, de facto, dedicou-se à
biologia! Ambos foram, contudo, marcos importantíssimos da nossa cultura
moderna e, como diz, as suas respectivas teorias tiveram efectivamente
uma grande repercussão no âmbito da fé cristã.
Em relação à teoria da evolução, há aspectos propriamente
científicos que não me parece curial comentar, por não me reconhecer
competente para o efeito. A Deus o que é de Deus, a César o que é de
César, e aos cientistas o que é dos cientistas. Se é verdade que, como
já tive ocasião de dizer, Galileu não procedeu bem invocando a Sagrada
Escritura como fundamento do heliocentrismo, os cardeais que se lhe
opuseram também não agiram correctamente quando usaram a Bíblia para o
refutarem, incorrendo assim, paradoxalmente, no mesmo erro pelo qual
Galileu foi julgado e condenado…
Contudo, creio que é pacífico afirmar que a teoria da evolução
não é mais do que uma hipótese ou, se quiser, uma teoria plausível, mas
não constitui uma lei científica, nem um facto empiricamente comprovado,
nem sequer uma certeza. É muito sugestiva aquela imagem de vários
seres, a começar num primata e a terminar num ser humano, mas não há
provas irrefutáveis de que tenha sido assim.
Por outro lado, há uma evidência antropológica que não pode ser
ignorada: mesmo que a matéria de que é feito o corpo humano possa ter
sofrido uma certa evolução, como aliás o próprio livro do Génesis
sugere, há necessariamente um momento em que essa matéria, animada ou
não, passa a ser propriamente um corpo humano – e esse instante é o da
infusão da alma. Portanto, a condição humana não é susceptível de um
processo evolutivo: ou se é homem, ou não se é, mas não há hipótese de
uma etapa intermédia. Entre o ser e o nada não há uma terceira hipótese,
como a não há entre a vida e a morte.
Do ponto de vista da fé, nada impede que a criação do primeiro
ser humano, que exige a acção divina pela qual é criada a sua alma e
infundida no seu corpo, tenha sido precedida de um processo de evolução
dessa matéria. Mas essa realidade física só é corpo humano a partir do
momento em que está integrada num todo dotado de vida própria. Se amanhã
eu receber uma transfusão de sangue, esse líquido ficará integrado na
minha realidade corpórea, será parte do meu ser, mas hoje esse sangue,
mesmo que já possa ser meu, não é uma parte de mim, não sou eu. Do mesmo
modo como um membro, separado do corpo a que pertenceu, já não é parte
desse organismo e, por isso, não pode ter vida em si mesmo. Aquele dedo,
mão, pé ou braço pode ter sido meu, mas já não sou eu, porque eu sou
apenas o meu corpo enquanto unido à minha alma. De certo modo, é o que
acontece com a geração de um novo ser humano: o material genético
feminino e masculino ainda não são o novo ser, mas a partir do momento
da concepção, ganham uma nova identidade, já não são elementos do corpo
paterno e materno, mas uma realidade inédita, que tem uma vida própria,
diferenciada da dos seus progenitores.
Portanto, devemos relativizar as possíveis conclusões a que
chegue a teoria da evolução: esses eventuais seres, cuja matéria teria
sido utilizada para a criação do homem, não seriam nossos antepassados,
como as tintas de que foi feito o quadro também não são ainda nenhuma
pintura, nem seu antecedente, até porque o quadro não se faz só com
tintas, mas também e sobretudo pela acção inteligente do artista. Deus
pode-se ter servido de elementos pré-humanos para a constituição de um
todo orgânico, um material apto para que nele pudesse depois ser
infundida uma força, uma energia imanente, a que chamamos alma, ou vida.
Mas mesmo essa matéria evoluída seria também efeito de uma acção
divina, pelo menos como seu primeiro princípio ou última causa, embora
anterior à criação e infusão da alma. A evolução, com efeito, exige uma
realidade prévia, que é o objecto que evolui, bem como um agente,
alguém que oriente esse processo. Crer que tudo vem do acaso e que a
organização da matéria não obedece a nenhum plano ou acção inteligente é
tão absurdo como afirmar que as letras de Os Lusíadas surgiram por
geração espontânea e juntaram-se por sua própria iniciativa nesse poema!
De todos os modos, parece-me que o evolucionismo há muito que
deixou de ser uma mera questão científica, para se converter numa nova
ideologia sobre a natureza humana. Por exemplo, hoje tende-se a
considerar que a distinção entre os animais irracionais e os seres
humanos é apenas de grau mas não de essência, e por isso há quem defenda
os inverosímeis «direitos dos animais» e ainda quem pretenda pautar o
comportamento humano em função das atitudes dos seres irracionais, o que
me permiti chamar algures uma «ética bestial», em sentido próprio…
Por último, tende-se a considerar que a natureza humana não é uma
realidade fixa, determinada, assente em princípios objectivos, mas uma
entidade cambiante, em permanente mutação, um fluxo que apenas obedece a
um desejo inato de superação. Talvez esteja aqui uma das matrizes do
moderno relativismo: do mesmo modo como a hipótese evolucionista propõe
vários estágios da condição humana, somos levados a crer que há muitas
modalidades da existência humana, da afectividade humana, da sexualidade
humana, da família humana, etc. A selecção natural, a eliminação dos
mais fracos, etc., sugere também políticas de selecção e de segregação
social e até, em última análise, práticas de extermínio dos considerados
socialmente menos hábeis, como acontece na vida selvagem e como
aconteceu nos campos de concentração da Alemanha nazi.
Embora nada tenha a opor à teoria científica da evolução – que,
insisto, é tema que cabe à ciência esclarecer e é compatível com a
doutrina cristã –, vejo com alguma preocupação a emergência desta
ideologia evolucionista, que não só parece alheia à lógica do mandamento
novo da caridade, como também pretenderá substituir o princípio
bíblico, «crescei e multiplicai-vos», pela máxima «evoluí e
eliminai-vos»…
O teólogo Henri de Lubac (jesuíta) escreveu que, no início do
cristianismo, o facto de o catolicismo ser uma religião monoteísta, que
acreditava num Deus único, significou uma libertação para o homem – que
deixa de estar disponível para satisfazer os caprichos dos mais variados
deuses e deusas, e é sabido como eram muito caprichosos. Mas, andando
no tempo, temos a sensação de que a Igreja não foi acompanhando a
evolução do pensamento científico, e tentou mesmo condicionar a
liberdade dos investigadores, limitando intelectualmente a sua liberdade
de fazerem descobertas que, no fundo, pusessem em causa muitas das
teorias que vêm na Bíblia. Concorda?
Não, a Igreja sempre viu com grande agrado e sempre potenciou o desenvolvimento científico.
Mas não queria deixar a questão da razão e da fé, uma vez que se
trata de um dos temas mais importantes do nosso tempo. Muitos cientistas
e muitos académicos consideram que falar de fé é uma questão menor, sem
interesse, e que revela mesmo uma profunda ignorância de quem procura
tratar do assunto. Parte-se do princípio de que uma pessoa racional,
culta e inteligente não tem um pensamento compatível com o estatuto de
crente. Esta tese generalizou-se desde o século XVIII, com os filósofos
que marcaram o pensamento filosófico do iluminismo. Por outro lado,
parece-me que o desaparecimento da fé é de certa forma análogo ao
desaparecimento da filosofia. Não se ensina filosofia, ou apenas têm
acesso a conhecimentos de filosofia estudantes de cursos humanísticos
muito específicos. Este caminho anulou o pensamento abstracto. As
pessoas não aprendem a pensar – aprendem a raciocinar, claro, mas não a
pensar – e, portanto, não têm mundo abstracto à sua volta. Sinal disso é
um curioso livro publicado recentemente em Itália, intitulado O átrio
sem gentios, reconhecendo que no tempo presente poucos se questionam
sobre a existência de Deus. Constata-se que Deus não existe, ou só
existe para os ignorantes, os iletrados, os incultos.
Eu diria que isso é um preconceito e é um preconceito que não
honra as pessoas que o expressam, porque, com todo o respeito pelos
não-crentes e agnósticos, acho que é bom desmistificar quer o ateísmo
quer o agnosticismo.
O ateísmo é um erro, logo não merece ser considerado sequer do
ponto de vista intelectual, porque não faz sentido – não estou a usar
uma linguagem de fé, mas uma linguagem racional. Não faz sentido eu
admitir um efeito para o qual digo que não existe uma causa! Para haver
um efeito, tem de haver uma causa, e a causa tem de ser proporcional ao
efeito.
Isso significa, senhor padre, afirmar que são os ateus que têm de
provar que Deus não existe, porque o pensamento óbvio, racional e sem
preconceitos é o de equacionar o mundo em que Deus existe? Isso equivale
à constatação de que, se nós existimos, Deus existe?
Claro, com certeza. A minha existência, a existência do mundo é
um facto que requer necessariamente um antecedente e esse antecedente é,
em última análise, Deus. Aliás, as famosas vias de demonstração da
existência de Deus, de São Tomás de Aquino, e outras mais que foram
formuladas ao longo da História, vão todas nesse sentido. São discursos
racionais, explicações da razão, explicações argumentadas em virtude das
quais se prova a necessidade da existência de um ser superior, a que
nós chamamos Deus, que está na origem e que é a causa de todas as
coisas. Portanto, o ateísmo é uma atitude violenta contra a razão. Uma
pessoa só consegue ser ateia quando interdita a sua razão de proceder,
natural e inteligentemente, na busca do fim e da razão de todas as
coisas.
É por a natureza obedecer a leis muito concretas que a ciência
existe? A ciência só o é porque a natureza se rege por leis, leis que se
repetem na física, na matemática, e porque 2 e 2 são 4!
Sim, há uma noção de ordem, de beleza e há uma noção também de
que as coisas irracionais agem com uma inteligência que não está nelas –
logo, essa inteligência tem de estar em alguém, que será o seu criador.
Eu não digo à ovelha que o lobo é mau, mas a ovelha «sabe» que o lobo é
mau. Não sabe porque seja capaz de ter esse conhecimento, mas porque
tem uma regra, porque tem um instinto, um mecanismo interior que a leva a
fugir daquilo que é nocivo para ela, como também a leva a procurar
aquilo que é bom, e por isso sabe qual é o alimento que deve ingerir e
aquele que não deve comer. Essa inteligência da criatura irracional é
uma inteligência que requer alguém, requer um ser, requer um ser
afastado da criação e que a criou e que a comandou neste sentido e com
este equilíbrio.
Isso é a natureza apontando para a existência de Deus? Será que
considera que a natureza prova a existência de Deus? Será que prova
igualmente a existência de vida? O facto de existir um ser inteligente,
que é o homem, cuja inteligência não é igual à da ovelha ou do lobo, um
ser que é o resultado de um acto divino, de Deus ter querido que assim
acontecesse. Se assim fosse, estaria em causa a teoria de Darwin? Está a
defender uma teoria contrária ao evolucionismo?
Não necessariamente, ou seja, estou a defender, sim, que o homem é
um ser absolutamente singular no Universo, que é um ser único, não é
comparável a nenhum animal, a nenhuma planta, a nenhuma realidade
material.
Por ser dotado de inteligência?
Exactamente, é isso aquilo que, na linguagem bíblica, se diz ao
afirmar que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27) –
nenhuma das outras criaturas foi criada à imagem e semelhança de Deus. O
homem, sim, e tem por isso um estatuto absolutamente singular e único. É
por isso que também se diz que o homem foi o único ser que Deus criou
por si mesmo: as outras coisas não foram criadas por si mesmas, foram
criadas para o homem e o homem foi criado para Deus.
O modo como o homem foi criado é, de certa forma, algo que a
ciência poderá um dia dar-nos a conhecer. Sabemos que a linguagem
utilizada na Bíblia, para referir a criação do homem, tem uma finalidade
concreta que é a de mostrar que o ser humano é um ser absolutamente
especial e que é um ser criado directamente por Deus e no qual Deus
espelhou a sua inteligência e a sua vontade. Por isso, o homem é um ser
livre, o homem e a mulher têm a mesma dignidade, têm a mesma condição,
são iguais naquilo que diz respeito aos seus direitos e aos seus deveres
fundamentais. Embora diferentes quanto à modalidade do seu género,
porque o homem é macho e a mulher é fêmea e isso tem consequências ao
nível do seu próprio espírito, da sua psicologia, do seu corpo, etc.,
têm a mesma condição e a mesma dignidade.
A Bíblia utiliza uma linguagem poética e deve assim ser lida, e
não pode ser interpretada literalmente, como se fosse um discurso
científico. Quando Deus nos fala da criação do mundo em 6 dias (Gn 1)
não nos está a dizer que a criação do mundo ocorreu em 6 dias, como é
óbvio!
E ao sétimo descansou...
E ao sétimo descansou. Mas não está só a dizer que Deus criou
todas as coisas, o que é importante, mas também que Deus criou cada uma
delas. O que aconteceria se o livro da Bíblia nos dissesse: «Deus criou
tudo num instante»? Nós tínhamos a ideia de que Deus era uma espécie de
industrial que carrega num botão e as coisas aparecem! Mas, se nos diz
que Deus num dia criou uma coisa, noutro dia outra, num dia colocou os
astros, no outro dia fez as plantas, no outro dia criou os animais
terrestres e no outro dia os peixes, nós olhamos para Deus como para um
pai, ou uma mãe, que está a decorar o quarto do bebé antes de o ter, não
é? Há uma atitude de amor, há uma solicitude amorosa que nos é referida
pelo modo como é descrita a própria criação. E, como a Bíblia não é um
texto escrito para um número selecto de inteligências privilegiadas,
como os cientistas, mas escrito para os homens do mundo inteiro, foi
utilizada uma linguagem acessível para todos nós, e daí recorrer a essas
expressões menos exactas em termos científicos, mas de grande beleza e
verdade poética. Seria errado, evidentemente, pretender que essa
linguagem fosse interpretada literalmente, porque então também tínhamos
que dizer que o demónio é uma serpente ou que as serpentes falam, coisa
que não faz sentido!
Quanto ao modo como surge o corpo humano, no qual é infundida a
alma (é da união do corpo e da alma que surge o ser humano)… Bom, isso a
ciência poderá e deverá averiguar.
Por vezes a gente da ciência, quando se interroga sobre o
aparecimento do mundo e sobre o aparecimento do ser humano, também nos
quer fazer acreditar em algo de impossível, ou seja, que o mundo nasceu
do nada, e o ser humano do acaso. Como é possível não nos interrogarmos
como pessoas nascidas do nada e para nada? Essa dúvida, muito frequente
no passado, é a essência da filosofia, e hoje parece estar banida, ser
um tabu que a própria ciência exclui, como se a ciência pudesse excluir
alguma questão.
É curioso que há uma tese que São Tomás de Aquino defendeu, uma
tese filosófica alheia à fé, sobre a possibilidade racional de um mundo
eterno. Ou seja, Deus podia ter criado um mundo eterno, um mundo que
tivesse existido desde sempre. Isto a nós faz-nos uma certa confusão,
porque nós temos tendência a pensar que tudo aquilo que é criado é
criado no tempo, porque, para nós, todas as coisas acontecem no espaço e
no tempo, não somos capazes de imaginar algo fora do espaço e do
tempo.
Mas São Tomás de Aquino disse que seria possível a Deus criar o
mundo fora do tempo, isto é, eterno. Um mundo que existisse desde
sempre. Isto não é imaginável, torna-se difícil para nós aceitarmos
isso. Ele diz que tal não aconteceu, mas a razão pela qual nós sabemos
que isso não aconteceu não é porque seja metafisicamente impossível, mas
porque foi revelado que o mundo foi criado no tempo. O mundo não
existiu antes desse momento, há um antes do mundo, há algo anterior à
sua existência.
Mas, de facto, o que nunca poderia acontecer é que o mundo não
fosse criado, isso não é possível. Se eu tenho uma cadeira, eu posso não
saber quem fez aquela cadeira, eu posso não saber a idade da cadeira,
mas eu tenho a certeza absoluta de que alguém a fez, não é? A existência
do efeito requer, necessariamente, a existência da causa. Eu tenho um
livro, eu sei que esse livro foi escrito por alguém, eu sei que esse
livro foi necessariamente realizado por alguém, o livro não pode surgir
do nada, o livro não surge por si próprio, é um absurdo a possibilidade
de o mundo existir por si mesmo. Como diziam os antigos: ex nihilo,
nihil fit – do nada, nada se faz.
Neste diálogo entre fé e razão, uma das questões mais complexas
de responder, de um lado e do outro, tem a ver com o aparecimento da
vida. Há quem procure insistentemente na ciência explicar que a vida
nasceu por acaso da matéria, isto é, da junção de átomos, ou outras
quaisquer partículas que um dia deram origem à vida. Não acha que esta
tese é tão intrigante e impossível como demonstrar que a vida nasceu de
Deus e que Deus existe? Ou não? O que é mais racional? O acaso ou a
vontade de Deus?
Nós não somos capazes de definir com rigor a vida, porque até
mesmo a matéria é de tal forma sofisticada e complexa que nós não somos
capazes de a criar, quanto mais a vida! Toda a comunidade científica
mundial não é capaz de fazer uma formiga.
Já foi capaz de clonar uma ovelha…
Exactamente, de clonar é capaz, mas criar não consegue. O acto em
virtude do qual do nada surge alguma coisa é, necessariamente, um acto
que ultrapassa a nossa capacidade. Ora, nós, não conhecendo no mundo um
outro ser tão desenvolvido como nós próprios, não podemos encontrar no
mundo uma razão para a sua própria existência, e como tal temos
necessariamente que admitir essa realidade, a da existência de um ser
que é a origem de todas as coisas que existem. Se depois essas coisas
que existem têm a capacidade de se juntarem, de forma a constituírem
organizações mais complexas, em que há um certo tipo de actividade
imanente que é, ao fim e ao cabo, aquilo que se entende por vida, muito
bem, com certeza! Mas o que é que está na origem, o que é que está no
princípio?
Há uma famosa frase que Platão atribui a Sócrates e que não só é
muito actual como guia a civilização ocidental desde sempre: «Nós temos
que seguir a razão para onde quer que ela nos leve.» Agora recentemente a
ciência deu, parece, um salto importante. Não sei bem avaliar a
importância desse salto mas descobriu-se uma nova partícula, atrás da
qual a ciência andava há mais de 50 anos. Curiosamente, essa experiência
do CERN que levou à partícula de Higgs, houve uma certa tentação em
muita comunicação social de misturar esse novo conhecimento com a
questão de Deus, chamou-se-lhe mesmo «a partícula de Deus». Alguns
diziam com mais rigor «partícula divina». Será que quanto mais a ciência
avança, mais nos leva a duvidar de que o Universo tenha sido criado por
Deus? Concorda que este passo da ciência, como outros que ocorreram ao
longo do último século, têm contribuído para demonstrar que Deus não
criou o Universo?
Por um lado permita-me que lhe diga que considero, de facto,
magnífica esta nova descoberta científica! A Igreja não é adversa do
progresso, do conhecimento humano, não olha com indiferença ou
desconfiança para estes acontecimentos; muito pelo contrário, sente-se
protagonista, desde a primeira hora, desta apaixonante aventura. É
interessante referir que, no exíguo Estado do Vaticano, há um
observatório astronómico, que é a manifestação palpável desse mesmo
interesse por todo o conhecimento científico, porque o conhecimento
humano, se é um conhecimento verdadeiro, leva a Deus.
Em relação a esta nova e espectacular descoberta científica,
monsenhor Sánches Sorondo, chanceler da Pontifícia Academia das
Ciências, disse duas coisas que eu desejaria sublinhar: por um lado, que
esta descoberta tinha já sido intuída pela inteligência humana, mas que
até à data carecia de uma prova experimental, que foi agora encontrada.
Isto quer dizer que o nosso entendimento, a razão humana, muitas vezes
acerta naquilo que intui que existe no Universo, mesmo antes de o poder
observar experimentalmente. Ou seja, a nossa inteligência é capaz de
prever as leis científicas, antecipando-se à sua comprovação empírica,
porque a própria realidade é, por assim dizer, inteligente, na medida em
que cumpre uma lei que faz sentido, que não é irracional ou
ininteligível. Isto prova que o mundo não é fruto do acaso, mas obedece a
uma razão criadora, que a nossa inteligência consegue intuir, mesmo
antes de a verificar cientificamente.
Antes de se investigar, procura-se encontrar uma razão, uma
explicação provável, uma possível causa, porque não se pode procurar
tudo, em todos os sítios e em todos os lugares, há que direccionar a
pesquisa. Esta atitude pressupõe, de facto, uma antecipação da nossa
razão, fundada na certeza de que o Universo se rege por leis
inteligentes e não pelo acaso. É claro que, quando se trata das ciências
experimentais, o recurso à experimentação empírica comprovará ou, pelo
contrário, como diria Popper, falsificará essa hipótese, que, se não for
comprovada pela experiência, terá de ser abandonada.
A segunda questão a que fez referência o chanceler da Pontifícia
Academia das Ciências, e que me parece muito interessante, é o facto de a
ciência poder dizer que algo existe. Este famoso bosão de Higgs não foi
nada fácil de encontrar: foi preciso repetir, muitas vezes, as mesmas
experiências para poder detectar, com alguma segurança, esta partícula
subatómica, que obviamente não pode ser observada facilmente. Mas a
ciência fica-se por aí: conclui na constatação do facto, na comprovação
da existência desta realidade. A comunidade científica sabe que isto não
é um dado absolutamente definitivo. Talvez daqui a 5 anos, ou daqui a
10 anos, ou daqui a 20 anos, tenhamos instrumentos ainda mais
sofisticados, que nos permitam ir ainda mais além deste bosão de Higgs.
Mas há uma pergunta que não se pode ignorar: «Quem é que pôs isso lá?» E
essa pergunta já não é uma pergunta científica, é uma pergunta
filosófica e teológica.
É o momento em que a ciência e a teologia se tocam?
Sim, a pergunta sobre o porquê já remete para a filosofia e para a
teologia. O cientista não pode deixar de apreciar a realidade, de
comprovar a beleza de um plano inteligente, e, portanto, dá-se conta de
que as coisas que acontecem não acontecem por acaso. Como dizia
Einstein, «Deus não joga aos dados». Portanto, as coisas têm um sentido,
as coisas têm uma razão, mas a razão que as coisas manifestam não está
nelas, porque não são inteligentes nem se movem por si mesmas, mas no
seu autor, e portanto, de uma forma quase necessária, o conhecimento
aprofundado da realidade, que é a ciência, ao fim e ao cabo remete-nos
para uma inteligência superior, remete-nos para alguém que é o criador
inteligente do mundo e esse é Aquele a quem chamamos Deus.
Regressando à fé, é por vezes evidente que muitos membros da
Igreja falam mais frequentemente da virtude da caridade do que da fé ou
da esperança, e têm a preocupação prioritária de mostrar as suas obras
sociais – que são inequivocamente muito importantes. A Igreja tem uma
tradição inquestionável de trabalho junto dos pobres, junto dos
deficientes e junto dos doentes. Simultaneamente, ficamos com a sensação
de que há membros da Igreja – padres, bispos, mesmo cardeais – que
evitam falar de Deus e referem-se muito mais facilmente às obras sociais
que desenvolvem, talvez porque considerem mais «aceitável» a sua
mensagem. Exprimindo-me mais docemente, diria que talvez se considerem
mais escutados pelas pessoas sem fé, transmitindo uma mensagem social.
Sabe que um escritor, um Nobel, Vargas Llosa, numa ocasião
determinada, fez uma observação muito curiosa, era ainda viva a madre
Teresa de Calcutá. Disse ele: «Eu aprecio muito a caridade da madre
Teresa de Calcutá, o trabalho que ela faz com os mais pobres dos pobres e
a forma como cuida dos órfãos, mas não aprecio a sua fé.» E eu diria
que esta atitude é uma atitude talvez recorrente, ou seja, há pessoas
que entendem a fé como uma limitação, ou, quando muito, na melhor das
hipóteses, como algo discutível – mas a caridade, não, porque a caridade
é serviço, a caridade é útil, a caridade é benéfica para o mundo. Mas
isto seria tão disparatado como dizer: «eu aprecio muito as rodas
daquele carro, porque andam muito, mas não tenho grande interesse pelo
motor, que não vejo, nem sei o que é». De facto, com certeza que a
caridade é importantíssima, mas a fé não o é menos.
Não se pode deixar de considerar que se trata de uma atitude um
pouco defensiva. Isto é, na comunicação social, particularmente na
televisão, aparecer um padre a falar de uma obra social que dirige –
mesmo tratando-se de uma obra social importante, repito – passa muito
bem (e se falar de crise e de política ainda melhor). Mas entrar nas
nossas casas a falar de Deus é quase considerado insuportável por muitos
espectadores, e ainda mais por jornalistas. Se o fizer, é considerado
de imediato um retrógrado, um conservador, alguém fora de moda e logo
por isso inaceitável.
Eu acho que é importante que a Igreja não ceda à tentação de ser
agradável, ou de ter um discurso que vá ao encontro daquilo que as
pessoas querem ouvir. A Igreja tem a sua própria mensagem, tem a sua
própria missão e não a pode trair. Tem de a dar a conhecer, na
fidelidade ao seu Mestre. Se quiser até, no limite, poderíamos dizer que
Jesus Cristo viveu na terra muitos anos, seguramente mais de 30, dos
quais pelo menos os últimos 10 terão sido vividos já como pessoa adulta.
Contudo, não consta que tenha fundado nenhuma instituição social… E
havia pobres, mendigos e outros necessitados, para com quem Ele
manifestou sempre uma enorme compaixão. Mas a sua principal preocupação
foi formar na fé aqueles que eram os Seus discípulos. O resto viria como
uma continuação, viria como uma consequência necessária dessa fé – uma
fé bem vivida não pode deixar de ter frutos de caridade. Se nos
dedicarmos só à caridade, podemos confundir-nos com uma ONG, ou com uma
instituição social que realizaria, sem dúvida, um trabalho magnífico,
mas que teria perdido a sua especificidade. E se a Igreja não fala de
Deus, ou se a Igreja não transmite a sua fé ao mundo, ninguém o fará por
ela. Ao passo que, se a Igreja não fizer um determinado trabalho
social, talvez mais ninguém o faça, mas até pode ser que algumas pessoas
o façam, porque há quem não sendo crente também se dedique a trabalhos
humanitários, ou trabalhos de algum modo filantrópicos.
Acho que é importante ir ao cerne daquilo que é a missão da
Igreja e não nos distrairmos com outras coisas – que não são coisas más,
insisto, são coisas boas, mas não são aquilo que é a missão específica
da Igreja e que só nós, os crentes, só nós os fiéis podemos realizar.
São Pedro escreveu (1 Pe 3,15): «dar razão da vossa esperança a
todo aquele que vo-lo peça». A esperança é uma das virtudes do
catolicismo e não foi certamente por acaso que Bento XVI lhe dedicou uma
encíclica. No entanto, alguém escreveu que é a menor das virtudes e não
vivemos tempos de muita esperança. Concorda se disser que a esperança
para os católicos corresponde ao optimismo para os políticos?
Conta-se de Alexandre Magno um episódio significativo: depois de
ter conquistado um dos mais amplos impérios do mundo e sentindo próxima a
morte, decidiu repartir entre os seus generais todas as suas terras e
bens. Um dos seus cortesãos perguntou-lhe o que reservava para si mesmo,
ao que o filho de Filipe da Macedónia terá respondido: a esperança!
Mas a esperança, como dizia, parece ser a gata borralheira das
virtudes teologais: a fé é o esplendor da verdade, a caridade é a
excelência do amor e a esperança parece ser, apenas, uma antecipada
satisfação, um rebuçado que nos é dado neste vale de lágrimas, para que
não desanimemos no esforçado empenho pela santidade. Há até quem pense
que a esperança tem muito pouco de virtude, porque a perspectiva do
ganho posterior parece retirar todo o valor ao acto virtuoso. Com
efeito, se o bem é feito na mira de uma recompensa futura, já não é um
dom gratuito, mas interesseiro ou calculista. Até porque dar para
receber em troca já não é dar, mas emprestar, ou, até, negociar.
Sem ânimo de esgotar o tema, tão excelentemente tratado por Bento
XVI na sua encíclica Spe salvi, permita-me no entanto que lhe diga que a
razão de fim não retira mérito à acção, antes a justifica. Quando duas
pessoas namoram, fazem-no na perspectiva de um futuro casamento – e
ninguém entende que esse objectivo retira autenticidade à sua relação de
amizade, até porque, se não fosse para casarem, o namoro não faria
sentido. Por isso, os antigos diziam que o fim é a última etapa na ordem
da execução, mas a primeira na intenção: é porque quero alcançar uma
determinada meta que me ponho a caminho. Portanto, a esperança natural é
uma consequência lógica da racionalidade da acção humana.
A esperança cristã, contudo, não é apenas isso, mas a certeza de
que o anseio de vida eterna e de felicidade é já uma realidade em Cristo
Nosso Senhor. É curioso notar como até as canções pimbas falam de
eternidade, apelam a um amor sem fim, reivindicam uma juventude perene,
uma alegria inesgotável… mas ficam-se por aí! Pelo contrário, a fé
cristã, mais do que promessa de um mundo melhor, é já a sua realização:
por isso, quando Jesus fala da comunhão eucarística, não diz apenas que é
penhor de uma vida eterna futura, mas que aquele que, nas devidas
condições, recebe o seu corpo, já tem em si a vida eterna (Jo 6,54). Não
é uma promessa, mas uma realidade já presente na alma em graça, como
também a nossa filiação divina – e haverá coisa mais estupenda do que se
saber e ser filho de Deus?! – não é algo que nos será concedido na
outra vida, se nos salvarmos, mas algo que é real já nesta vida, pela
graça do baptismo, muito embora só no Céu nos seja dada a experimentar
em plenitude (cf. 1 Jo 3,1-2).
Do mesmo modo que a caridade e a fé, também a esperança é uma
virtude teologal, na medida em que tem Deus por objecto. Ou seja, a
esperança cristã não é uma espécie de fezada de que as coisas hão-de
correr bem, um ingénuo optimismo em relação ao futuro, uma generosa
expectativa do que vai ser o destino, mas, pelo contrário, a absoluta
certeza de que, quaisquer que sejam os acontecimentos, tudo será para
bem, porque tudo é graça, tudo é amor de Deus.
Permita-me que, a modo de conclusão, remate esta resposta com um
texto de Paulo aos romanos: «Quem nos separará, pois, do amor de Cristo?
A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a
espada? Mas de todas estas coisas saímos mais que vencedores por Aquele
que nos amou. Porque eu estou certo de que nem a morte, nem a vida, nem
os anjos, nem os principados, nem as coisas presentes, nem as futuras,
nem as potestades, nem a altura, nem a profundidade, nem nenhuma outra
criatura nos poderá separar do amor que Deus nos manifesta em Cristo
Jesus, nosso Senhor» (Rm 8,35.37-39).
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