Blasfémia (1.º capítulo)
Posted by Hugo Neves on
1. NUM BURACO NEGRO
Na prisão, os dias e as noites são parecidos. Dormito de vez em quando, sem nunca ter a impressão de dormir. Os sons da prisão arrancam‑me ao começo do meu sono. Uma porta a bater, é a mudança da guarda. O barulho de um molho de chaves, os passos dos guardas misturados com o chiar das rodas do carrinho da sopa, é a hora da refeição. Um balde metálico que se arrasta pelos ladrilhos do corredor, é a faxina do turno da noite – ou será da manhã? A minha morte é lenta, por agora sem dor, mas de tal maneira lenta…
Não sou verdadeiramente capaz de dizer o que sinto. Medo, isso de certeza… O medo está cá, mas já não me afecta como no princípio. Nos primeiros dias, o medo era capaz de tocar tambor no meu peito. Agora, tornou‑se mais calmo. Deixei de estar permanentemente em sobressalto. Mas as lágrimas não me deixaram. Correm em intervalos regulares. Os soluços, esses, acabaram. As minhas lágrimas são as minhas companheiras de cela. Dizem‑me que ainda não desisti completamente, dizem‑me da injustiça que se abateu sobre mim, dizem‑me que estou inocente.
O tribunal de Nankana não se limitou a atirar‑me para aqui, para o fundo desta cela húmida e fria, tão pequena que consigo alcançar as paredes com os dois braços abertos. Retirou‑me também imediatamente o direito de eu ver os meus cinco filhos. Impossível, agora, apertá‑los contra o peito e contar‑lhes as histórias de monstros e príncipes do Punjabe que a minha mãe me contava quando eu tinha a idade deles.
Esta noite, como em todas as noites, morro de dor por falta deles, muito mais que por causa da prisão. Por não os tocar, por não os sentir. Seria capaz de dar tudo o que tenho por um instante com eles, na nossa casa, todos os seis aninhados na cama familiar. Rio‑me quando penso nas intermináveis sessões destinadas a catar piolhos, no Inverno passado, quando Isham, a minha filha mais nova, se escondeu no cesto da roupa para escapar ao pente fino. Ashiq, o meu marido, jurou aos filhos que um piolho alimentado pelo couro cabeludo de uma menina podia, um dia, atingir o tamanho de uma ratazana se não tivéssemos cuidado.
– Uma ratazana? Uma ratazana no meu cabelo? – gritou então Isham, correndo a refugiar‑se debaixo da minha túnica…
Meu Deus, como adorei esses momentos!
Justamente Deus, o meu Deus, aquele por quem estou aqui agora. Quanto tempo fará Deus durar a minha agonia? Eu era boa cristã antes de tudo isto, e se faço tanta falta aos meus filhos é porque devia ser boa mãe. Nesse caso, porquê esta minha punição? O meu esposo teve‑me, no nosso casamento, tão virgem como Maria. Mais tarde, em todos os Natais a mãe dele felicitava‑o por ele me ter tomado para sua mulher. Boa esposa, boa mãe, boa cristã, mas actualmente boa sobretudo para a corda…
Não conheço grande coisa do mundo fora da minha aldeia. Não tenho instrução, mas sei o que é o bem e sei o que é o mal. Não sou muçulmana, mas sou boa paquistanesa, católica e patriota, dedicada tanto ao meu país como a Deus. Temos amigos muçulmanos. Amigos que nunca nos trataram de modo diferente. E, apesar de a vida nem sempre ser fácil para nós, tínhamos o nosso lugar. Um lugar com o qual sempre nos contentámos. Quando se é cristão no Paquistão, é claro que temos de baixar um pouco os olhos. Algumas pessoas consideram‑nos cidadãos de segunda. Não conseguimos senão trabalhos penosos, são‑nos reservadas as mais miseráveis tarefas. Mas a minha vida agradava‑me muito. Antes de toda esta história, eu era feliz com os meus, lá na minha terra, em Ittan Wali.
Desde que as autoridades querem pendurar‑me duma corda, as pessoas vêm ver‑me, pessoas importantes, estrangeiros também. Mas na verdade, isso foi ao princípio, porque agora estou completamente isolada. Não posso ver ninguém, excepto o meu marido e o meu advogado.
Nunca percebi quem eram essas pessoas, mas ajudaram‑me. Parece que fora do meu país é difícil acreditar nisto, mas aqui, os meliantes, os assassinos, os violadores são mais bem tratados do que os acusados de insultar o Alcorão ou o profeta Maomé. Por mim, sei disso desde sempre. Para um cristão, expressar a mais pequena dúvida sobre o Islão dá direito ao cadafalso. Mas sempre depois de uma longa passagem pela prisão.
Não vejo mais nada senão as grades, o chão húmido e as paredes sujas de porcaria. Um cheiro a gordura, suor e urina invade tudo. Uma mistura insuportável, mesmo para uma rapariga do campo. Eu pensava que isto iria passar, mas não. É o cheiro da morte, ou do desespero…
Não sei quanto tempo me resta de vida. De cada vez que a porta da minha cela se abre, o coração bate‑me com mais força. Estou nas mãos de Deus e não sei o que me vai acontecer. É violento e cruel.
Uma rapariga do campo, dos campos de cana‑de‑açúcar. É isso que eu sou. Na primeira vez que me tocou, o meu marido disse‑me que a minha pele tinha o sabor da cana. Ri‑me à gargalhada. A minha mãe tinha‑me prevenido. Todos os rapazes da aldeia dizem isso na primeira vez, sem que alguém saiba de onde veio essa ideia bizarra. Entre nós, raparigas, ríamo‑nos. Imaginávamos os rapazes, na sala de aula, a explicarem uns aos outros como funcionava uma rapariga. Um deles fazia de professor:
– Mas sobretudo, lembrem‑se de dizer que a pele delas sabe a cana‑de‑açúcar…
Tínhamos apenas quinze anos, mas a minha diferença já estava presente. As minhas amigas muçulmanas excluíam‑me com naturalidade de muitos momentos. Como acontecia no período do Ramadão, em que eu me escondia para beber água durante o dia, altura em que elas tinham de jejuar desde o nascer ao pôr do sol. Esse tempo não me parecia assim tão distante antes de entrar para a prisão. Eu era uma delas, apesar de tudo. Diferente, mas era uma delas.
Actualmente sou como todos os blasfemos do Paquistão. Quer sejam culpados, quer não, a vida deles deu um trambolhão. Pelo menos, nunca deixa de ser quebrada por uns anos na prisão. Mas a maior parte das vezes, os autores do ultraje supremo, sejam cristãos, hindus ou muçulmanos, são mortos na cela por um colega de prisão ou mesmo por um guarda. E, quando são declarados inocentes, o que é muito raro, são sistematicamente abatidos quando saem da penitenciária.
No meu país, a marca da blasfémia é indelével. Ser suspeito é um crime em si mesmo para os fanáticos religiosos, que julgam, condenam e matam em nome de Deus. Contudo, Alá não é outra coisa senão amor. Não compreendo porque é que os homens se servem da religião para fazer mal. Gostaria de acreditar que primeiro que tudo somos homens e mulheres, antes de sermos representantes de uma religião.
Actualmente custa‑me não saber ler nem escrever. Só agora me dou conta de até que ponto isso é um obstáculo. Se soubesse ler, talvez não estivesse aqui encerrada hoje. Certamente teria tido mais domínio sobre os acontecimentos. Em vez disso, sofri as consequências desses acontecimentos e ainda hoje as sofro. Segundo os jornalistas, dez milhões de paquistaneses estão prontos para me matar com as suas próprias mãos. Um mulá de Peshawar prometeu mesmo uma fortuna, 500 000 rupias, a quem conseguir a minha pele. É o preço de uma bela casa no Paquistão, com pelo menos três divisões e todo o conforto. Não compreendo toda esta obstinação. Sempre respeitei o Islão, os meus pais e os meus avós criaram‑me no respeito por essa religião. Estava mesmo feliz por os meus filhos aprenderem a ler no livro sagrado dos muçulmanos, na pequena escola pública da aldeia.
Sou vítima de uma cruel injustiça colectiva. Encerrada, amarrada, acorrentada há dois anos, banida do mundo enquanto espero pela morte. Eu, Asia, estou inocente, mas sou culpada de ser uma presumível culpada. Começo a perguntar‑me se, mais do que uma tara ou um defeito, ser cristão no Paquistão não se tornou simplesmente um crime.
Apesar de me encontrar numa pequeníssima cela sem janela, quero fazer ouvir a minha voz e a minha raiva. Quero que o mundo inteiro saiba que vou ser pendurada pelo pescoço por ter ajudado o meu semelhante. Sou culpada de ter dado provas de solidariedade. O meu único erro? Ter bebido água proveniente de um poço pertencente a mulheres muçulmanas, pelo copo «delas», debaixo de um sol com 40 °C.
Eu, Asia Bibi, fui condenada à morte porque tive sede. Sou prisioneira porque utilizei o mesmo copo dessas mulheres muçulmanas. Água bebida por uma cristã considerada impura por essas estúpidas companheiras dos campos.
Meu Deus, não compreendo! Porque me sujeitais a tamanha provação?
Da minha prisão imunda, quero que oiçam a minha pobre voz para denunciar esta injustiça e esta barbaridade. Quero que todos os que pretendem ver‑me morta saibam que trabalhei durante anos na casa de uma família de ricos funcionários muçulmanos. Quero dizer aos que me condenam que os membros dessa família, que são bons muçulmanos, não se incomodavam com o facto de uma cristã lhes preparar as refeições e lhes lavar a loiça. Passei seis anos da minha vida na casa dessas pessoas, que são para mim uma segunda família e me amam como sua filha!
Sinto raiva contra essa lei da blasfémia responsável pela morte de muitos crentes ahmadis, cristãos, muçulmanos e até hindus. Há muito tempo que esta lei atira para a prisão gente inocente como eu.
Porque é que os políticos não se interessam por esta situação? Apenas o governador do Punjabe, Salman Taseer, e o ministro cristão das Minorias, Shahbaz Bhatti, tiveram a coragem de me apoiar publicamente e de se oporem a esta lei de outra era. Uma lei que é em si própria uma blasfémia porque está na origem, em nome de Deus, de opressão e de morte.
Esses dois homens corajosos foram mortos em plena rua, por terem denunciado esta injustiça. Um era muçulmano, o outro cristão. Ambos sabiam que arriscavam a vida, porque eram ameaçados de morte por fanáticos religiosos. Apesar de tudo isso, esses homens valorosos e humanistas não renunciaram ao seu combate pela liberdade religiosa, para que os cristãos, os muçulmanos e os hindus vivam felizes, de mãos dadas, na terra do Islão. Esses dois homens pagaram o preço mais alto possível. Mas um muçulmano e um cristão que derramaram o seu sangue pela mesma causa são, talvez, uma mensagem de esperança.
Aterrorizado, porém, o governo obedece às exigências dos fundamentalistas, e esta lei contra a blasfémia nunca será alterada, segundo Ashiq me disse. Esta lei malvada vai continuar a roubar a vida a numerosos inocentes.
Tenho de voltar a comparecer perante a justiça, para recorrer da minha condenação à morte. Mas já não confio nesta justiça que se abate sobre a pobre gente desamparada como eu. Se, por milagre, eu não for morta na cela antes de ser julgada, serei assassinada de qualquer maneira.
Eu, pobre rapariga do campo, tornei‑me, contra minha vontade, um assunto de Estado.
Eu, Asia Bibi, sou agora o símbolo da lei contra a blasfémia, e não posso fazer nada quanto a isso.
Tenho a impressão de ter caído num buraco negro sem fundo de onde não posso fugir. Espero então a minha hora com pavor. Se for absolvida, não dou grande coisa pela minha vida no Paquistão. Será preciso que outro país me adopte, visto que o meu país já não quer nada de mim. Estou condenada a fugir da minha terra natal bem‑amada, mas a raiva que acumulei na prisão durante estes dois últimos anos dá‑me forças para continuar a viver no estrangeiro com a minha família, também ela ameaçada de morte.
Aqui ninguém me ouve, por isso espero de todo o coração que a minha pobre voz seja ouvida para lá do Paquistão. A minha vida tem pouco valor, e os fundamentalistas religiosos só ficarão satisfeitos quando consumarem o seu crime nefando. Quero também que o meu testemunho seja útil aos outros, injustamente condenados, tal como eu, em nome desta lei.
Imploro à Virgem Maria para que me ajude a suportar cada minuto a mais sem os meus filhos, que se perguntam porque terá a sua mamã deixado tão bruscamente a casa.
Deus dá‑me todos os dias força para suportar esta horrível injustiça, mas por quanto tempo ainda? Meses, anos? – se ainda me permitir viver? Rogo ao Senhor todos os dias a graça de sobreviver a esta miserável existência, mas sinto que enfraqueço, já não tenho a força que tinha dantes e ignoro quanto tempo ainda vou resistir aos vexames e às minhas atrozes condições de vida.