Jesus (1.º capítulo)
Posted by Hugo Neves on
I. O NASCIMENTO, A INFÂNCIA E A JUVENTUDE
O mundo em que Jesus nasceu era um mundo cruel, violento e instável, para além de materialista e cada vez mais rico. O grande facto geopolítico da época era Roma e as respetivas possessões, que estavam a passar pelo processo de transformação de república em império, e ocupavam naquela altura as margens do Mediterrâneo, de onde um dos seus grandes homens – Pompeu – tinha expulsado os piratas que o haviam infestado, recorrendo para isso a métodos implacáveis: a brutalidade, a tortura e as execuções públicas em grande escala. Em consequência destes factos, o comércio expandia‑se a enorme velocidade e houve indivíduos e cidades inteiras cuja riqueza duplicou durante a geração anterior àquela em que Jesus nasceu.
Depois de ocupar as zonas costeiras do Mediterrâneo, Roma avançou para o interior do território, ocupando Itália e Espanha, bem como a Grécia e o Egito, e ainda o território correspondente à atual Turquia; por esta altura, viviam sob jurisdição romana entre 50 e 60 milhões de pessoas. Cinquenta anos antes de Jesus nascer, Júlio César tinha juntado a Gália (a atual França) aos territórios romanos, tendo mesmo chegado a fazer duas viagens de reconhecimento à Britânia, embora a ilha só tenha sido efetivamente conquistada quinze anos após a morte de Jesus. Este império em expansão assentava mais no poder da mão de obra esforçada do que na tecnologia, apoiado nos cerca de 15 milhões de escravos que constituíam um terço da população das cidades, e cuja vida Aristóteles resumia em quatro palavras: «trabalhar, ser castigado, comer»; com efeito, um escravo competente podia ser comprado pelo equivalente a dois anos de alimentos. Embora não fossem cientistas nem técnicos, os romanos eram legisladores e construtores, dispondo de leis que se destinavam uniformemente a todo o mundo civilizado, e cuja aplicação era imposta com horrível severidade; o instrumento da justiça era o crucifixo, aonde os malfeitores eram pregados e de onde pendiam até morrer. Por outro lado, os romanos construíram estradas soberbas e tinham descoberto as virtudes do cimento que, misturado com aglomerados, formava o betão; o Império Romano foi construído em cimento, o que permitiu aos romanos criar enormes aquedutos, que levavam água potável às cidades, bem como erigir majestosos edifícios públicos. Roma não produzira uma cultura tão esplêndida como a da Grécia; de facto, grande parte das estátuas que adornavam as cidades romanas eram cópias de modelos gregos, e Roma nunca foi capaz de ostentar coisa alguma tão refinada como o Parténon grego. Mas o Fórum de Roma não deixava de ser espetacular pela sua dimensão, e o Panteão da cidade, erigido no tempo de Jesus, foi uma obra revolucionária em termos de amplitude do espaço fechado. Além disso, Roma estava a desenvolver a literatura: o poeta nacional, Virgílio, morrera quinze anos antes de Jesus nascer, e Horácio, o maior lírico de Roma, quatro anos antes; mas Ovídio, o poeta do amor, estava vivo – tinha 39 anos em 4 a.C. –, Lívio concluiu a sua magistral história de Roma quando Jesus era adolescente, Séneca, dramaturgo e filósofo, nasceu no mesmo ano que Jesus, e a enorme escultura de mármore que dá pelo título de Laocoonte e os filhos, e que se encontra atualmente nos Museus do Vaticano, foi criada durante a sua infância.
A eflorescência cultural que teve lugar no tempo de Jesus foi possibilitada pela estabilidade imposta pelo herdeiro de César, Octaviano, que, tendo saído vencedor da guerra civil, veio a ser o primeiro imperador, com o nome de Augusto César. Octaviano morreu tinha Jesus dezoito anos mas, durante o período de governação do sucessor dele, Tibério, Roma vivia de tal maneira aterrorizada pela Guarda Pretoriana, que o imperador não hesitou em se deslocar para a ilha de Capri, onde vivia mergulhado em prazeres, e entregar o controlo do império a Sejano, o comandante da Guarda. No território que dá atualmente pelo nome de Palestina, vivia‑se, ao tempo do nascimento de Jesus, uma calma semelhante, sob a tirania plutocrática de Herodes, o Grande. Durante mais de trinta anos, este homem – um financeiro astucioso que veio a ser o homem mais rico do império – seria, por via da sua subserviência aos chefes de Roma e dos principescos presentes que lhes oferecia, o dono e senhor do já antigo reino dos judeus. Não houve, no seu tempo, governante que tanto construísse como Herodes, que criou um novo porto em Cesareia, na Samaria, reconstruiu e aumentou o Templo de Jerusalém, e erigiu termas, aquedutos e aquilo a que hoje chamamos centros comerciais em meia dúzia de cidades, para além de uma cadeia de fortalezas de peso, entre as quais se contava a gigantesca torre Antónia (em homenagem a Marco António), em Jerusalém, localizada diante do Templo e do enorme palácio onde ele próprio vivia. Herodes beneficiara os judeus com construções colossais, mas nem por isso era especialmente apreciado por eles: sendo apenas meio judeu de origem, e totalmente grego nos gostos, era considerado um herege pelas autoridades religiosas, pelo facto de patrocinar jogos, teatros e música de estilo grego; por outro lado, tinha numerosas mulheres e concubinas, algumas das quais eram gentias, e das quais teve muitos filhos. Desconfiado e cruel, Herodes mandou matar mais de quarenta membros da sua família – incluindo mulheres, filhos e outros –, muitos deles em circunstâncias de especial atrocidade, acusando‑os de conspirações, reais ou imaginárias, contra a sua pessoa e o seu governo. À medida que o seu reinado se foi aproximando do fim – o seu último ano de vida foi o ano em que Jesus nasceu –, foi‑se tornando cada vez mais desconfiado, sendo a corte dominada por uma atmosfera de paranoia.
Mas o reinado de Herodes foi próspero e, embora fosse tida por primitiva e agreste pelos judeus urbanos e sofisticados de Jerusalém, a Galileia estava longe de ser economicamente atrasada. Os judeus da Galileia comiam bem: havia abundância de gado ovino, que era criado com vista à produção de lã, mas também ao consumo da carne; aliás, a ubíqua presença de ovelhas e pastores na vida de Jesus estará na origem das suas imagens mais frequentes. Os cereais, cultivados com abundância, eram baratos e exportados para toda a Cesareia; o pão, «o sustento da vida», era comido a todas as refeições, e também ele foi uma fonte de várias imagens de Jesus. A oliveira era abundante, e a dieta diária contava com uma variedade de azeitonas pretas, verdes e brancas, das quais também se extraía o azeite, com que se cozinhava; e havia ainda uma grande variedade de legumes, que tanto se podiam comer crus como cozinhados, para além de especiarias. Às refeições principais, bebia‑se vinho.
Os judeus ajudavam‑se uns aos outros, e cada comunidade dispunha de esquemas próprios destinados a cuidar dos doentes, dos órfãos e das viúvas que tivessem necessidades. Havia judeus pobres, que eram ajudados pelos seus irmãos, mas a maioria daqueles a que os evangelhos chamam «pobres» e «pedintes» não eram judeus, porque todas as zonas da Palestina eram sociedades miscigenadas, que contavam com imigrantes, com camponeses deslocados e com nómadas, que aliás constituíam uma parte significativa da população. Dar esmola aos «pobres» era um dos deveres de qualquer judeu, e também esse ato está associado à vida de Jesus.
Em 4 a.C., Nazaré era uma pequena cidade da Galileia, que albergava pequenas oficinas e os respetivos artífices. Um deles era José, um carpinteiro que se considerava descendente do rei David e era capaz de recitar a sua ascendência, e que, muito provavelmente, à semelhança da maioria dos judeus, sabia ler e escrever, quer em aramaico, a língua vernácula, quer em hebraico, a língua das Escrituras. José tinha tomado como futura esposa uma adolescente de cerca de dezasseis anos chamada Maria, também da casa de David e muito provavelmente sua parente; Maria viveria na oficina de José, ou no andar por cima da mesma, mas era virgem, e o casamento teria lugar no ano seguinte. Maria era filha de uma família respeitável, sabia ler e escrever, cozinhar, tecer e coser, e estava a preparar‑se para ser a diligente esposa de um próspero artífice. Sendo uma mulher de grande memória, seria Ela, muitos anos mais tarde, a principal fonte de São Lucas, um médico de língua grega, cujo evangelho trata, com mais pormenor que os outros, do nascimento e da infância de Jesus.
Todos os judeus cultos liam as Escrituras – em especial a Torah –, que constituíam o registo escrito da história da nação, bem como o conjunto das suas normas espirituais e o seu livro de orações. Era nisso que Maria se ocupava quando lhe apareceu o Arcanjo São Gabriel que, de acordo com São Lucas (1, 28‑38), lhe disse: «Salve, ó cheia de graça, o Senhor está contigo»; tão extraordinário cumprimento perturbou‑a e intrigou‑a, mas Gabriel prosseguiu: «Não tenhas receio, Maria, pois achaste graça diante de Deus. hás de conceber no teu seio e dar à luz um filho ao qual porás o nome de Jesus. Ele será grande e chamar‑se‑á Filho do Altíssimo. O Senhor Deus dar‑Lhe‑á o trono de Seu pai David, reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o Seu reinado não terá fim.»
Podemos ter a certeza de que Maria se recordava com exatidão das palavras do anjo. Em seguida, algo preocupada, fez a sua primeira pergunta: «Como será isso, se eu sou virgem?» (ou, nas palavras dela, «se eu não conheço homem?»), e o anjo respondeu‑lhe com clareza: «O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo estenderá sobre ti a Sua sombra. Por isso mesmo é que o Santo que vai nascer há de chamar‑Se Filho de Deus.»
Ditas estas frases dramáticas, o anjo concluiu a sua mensagem como uma informação de natureza pessoal, comunicando a Maria que, na sua velhice, sua prima Isabel também tinha concebido um filho, e estava grávida de seis meses; recebida esta novidade incrível, Maria aceitou o destino que lhe estava reservado com palavras memoráveis, expressivas de uma humildade magnífica: «Eis a escrava do Senhor, faça‑se em mim segundo a tua palavra.»
Não há, em toda a história da humanidade, cena mais tocante do que esta, em que Gabriel revela à Virgem, trémula de espanto, que está grávida, e Ela aceita corajosamente este facto como uma honra; não é, pois, de espantar que os grandes artistas do Ocidente se tenham esforçado por retratar este episódio em múltiplas Anunciações. Tendo em consideração que estamos a falar de uma adolescente, Maria era uma jovem bastante enérgica e decidida; querendo confirmar a notícia relativa a sua prima, põe‑se imediatamente a caminho, sozinha, empreendendo a longa viagem que a levaria às montanhas da Judeia, onde Isabel vivia com o marido, Zacarias, um sacerdote que oficiava por turnos no Templo de Jerusalém.
A segunda cena impressionante da história de Jesus teve lugar quando Maria chegou a casa de Isabel, e também esta foi registada por Lucas. Ao ver chegar sua prima, Isabel sentiu o filho, o futuro São João Batista, mexer‑se‑lhe dentro do seio, e o Espírito Santo deu‑lhe imediatamente a conhecer que Maria também estava grávida, trazendo no seio o Filho de Deus. E, «erguendo a voz, [Isabel] exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. E donde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?”» (Lc 1, 41‑43).
A resposta de Maria a este cumprimento é uma das mais notáveis passagens do Novo Testamento, uma resposta dita com palavras que facilmente podem tomar a forma de uma poesia (a forma com que eu tomei a liberdade de as transcrever), e que têm sido frequentemente musicadas (Lc 1, 46‑55):
A minha alma glorifica o Senhor,
E o meu espírito exulta em Deus, meu Salvador.
Porque olhou para a humilde condição da Sua serva,
De facto, desde agora todas as gerações me hão de chamar ditosa.
Porque me fez grandes coisas o Omnipotente,
É santo o Seu nome,
E a Sua misericórdia vai de geração em geração para aqueles que O temem.
Exerceu a força com o Seu braço
E aniquilou os que se elevavam no seu próprio conceito.
Derrubou os poderosos de seus tronos
E exaltou os humildes.
Encheu de bens os famintos
E aos ricos despediu com as mãos vazias.
Este grandioso hino de louvor, que é conhecido como Magnificat e eleva o espírito dos pobres e dos humildes, deixa antever um dos temas principais do ministério de Jesus. No quadro da história narrada pelos evangelhos há, não apenas verdade, mas também beleza, que é fruto da verdade, e Maria, com Jesus no seio, criou um poema de impressionante força.
Diz São Lucas que Maria ficou três meses em casa de Isabel, após o que regressou a Nazaré e revelou a José que estava grávida. De acordo com o evangelho de Mateus (1, 19‑25) que é, em muitos aspetos, o mais pormenorizado e se baseia em fontes aramaicas, o noivo, que a tinha tratado como virgem, ficou chocado ao receber tal informação; mas, como «era um homem justo e não queria difamá‑la, resolveu deixá‑la secretamente. Andando ele a pensar nisto, eis que um anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: “[…] Não temas receber Maria, tua esposa, pois o que Ela concebeu é obra do Espírito Santo. Ela dará à luz um Filho e pôr‑Lhe‑ás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados.» Diz São Mateus que José fez como o anjo lhe ordenara e «recebeu sua mulher», não tendo os dois co‑habitado até Jesus nascer. Na verdade, as mais antigas tradições insistem em salientar que Maria permaneceu virgem toda a vida, embora José lhe tenha dedicado, e a seu Filho, o amor e as atenções que qualquer marido afetuoso dedica à mulher e à própria descendência.
O episódio seguinte teve lugar quatro ou cinco meses depois, numa altura em que um decreto do imperador Augusto, ordenando a realização de um recenseamento – um processo que era necessário por motivos fiscais –, foi comunicado aos súbditos de Herodes por Quirino, o governador da Síria; todos os habitantes do império tinham de ir registar‑se à sua cidade de origem. Dado que tanto José como Maria eram da casa de David, foram ambos (estando Maria grávida, como refere Lucas 2, 5) a Jerusalém, a cidade que David tinha juntado ao reino de Judá por conquista, em particular a Belém, uma pequena cidade de província situada a dez quilómetros de Jerusalém, que estava especialmente ligada ao nome de David. Maria era uma jovem robusta – era a terceira viagem de monta que fazia durante a gravidez. E, estando eles em Belém, «completaram‑se os dias de Ela dar à luz e teve o seu Filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoira, por não haver para eles lugar na hospedaria» (Lc 2, 6‑7). Cerca de um século mais tarde, São Justino, mártir, que era natural de uma povoação situada a cerca de 60 quilómetros de Belém e estava a fazer eco a uma tradição local, declarou que a manjedoira ficava numa gruta, facto que não é improvável, porque há muitas grutas na cumeeira de calcário de onde Belém espreita o mundo.
Não há qualquer referência a médicos ou a parteiras, e dá a impressão de que José foi a única pessoa presente durante o parto. Mas Maria não precisava de grandes ajudas: teve a criança sozinha e o Filho era saudável, como saudável foi durante toda a vida. No entanto, apareceram‑lhes uns visitantes (Lc 2, 8‑18; Mt 2, 1‑12). Diz Lucas que uns pastores «que pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a noite», foram surpreendidos por uma grande luz, na qual reconheceram uma visão angélica, «e tiveram muito medo»; mas o anjo disse‑lhes; «Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria. […] Hoje, na cidade de David, nasceu‑vos um Salvador, que é o Messias Senhor. […] Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoira». De repente, ouviu‑se no céu um coro de anjos que cantavam: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens do Seu agrado.» Os pastores decidiram então ir a Belém, onde encontraram Jesus, Maria e José, tal como o anjo lhes tinha dito, num estábulo; depois contaram tudo isto às gentes da terra e «todos os que ouviram se admiraram do que disseram os pastores». Finalmente, contaram a Maria que tinham visto uma luz, ouvido as palavras do anjo e depois um coro de vozes angélicas louvando a Deus e Ela «guardava todas estas coisas no seu coração».
Aquilo a que Lucas não faz referência, mas que sabemos por Mateus, foi que Maria, José e Jesus também receberam a visita de «uns magos vindos do Oriente», que Lhe trouxeram ouro, incenso e mirra, «presentes» (como lhes chama São Mateus) próprios para oferecer a um rei. Estes magos eram astrólogos, que estavam habituados a observar os céus e a fazer prognósticos com base na mutável configuração das estrelas; e havia uma estrela específica que, na opinião deles, dava a conhecer, pela sua posição, que tinha nascido um rei dos judeus. Foram, pois, a Jerusalém e apresentaram‑se na corte de Herodes, pedindo que lhes dissessem onde estava o referido rei. Herodes reuniu «todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do povo», a quem pediu que lhe indicassem, com base nas Escrituras, onde nasceria o Rei, o Salvador, o Cristo; ao que eles responderam: em Belém. Então Herodes «mandou chamar secretamente os magos» e enviou‑os a Belém, dizendo‑lhes: «Ide e informai‑vos cuidadosamente acerca do Menino e, depois de O encontrardes, vinde comunicar‑mo, para que também eu vá adorá‑Lo.»
A presença dos magos, e a circunstância de terem referido que o recém‑nascido estava destinado a ser o rei dos judeus, trouxeram à superfície as obsessões de Herodes; diz Mateus que, «avisados em sonho a não voltarem para junto de Herodes, [os magos] regressaram à sua terra por outro caminho». Também José foi avisado num sonho de que ele, Maria e Jesus corriam perigo por causa de Herodes; o anjo que lhe apareceu ordenou‑lhe: «Levanta‑te, toma o Menino e Sua Mãe, foge para o Egito e fica lá até que eu te avise, pois Herodes procurará o Menino para O matar.» E José obedeceu. A fuga para o Egito é outro daqueles episódios memoráveis que inspirou os artistas de todos os tempos – é nomeadamente objeto de um dos mais belos quadros de Caravaggio, que se encontra atualmente na Galeria Dora Pamphilj, em Roma, em que o pequeno grupo está a descansar, José segurando uma pauta de música diante de um jovem anjo, que toca uma canção de embalar, enquanto Maria dorme com Jesus ao colo.
O terror de que o pequeno rei lhe roubasse o trono levou Herodes a cometer o maior crime da sua longa vida de malfeitorias: ordenou a um bando de assassinos que fossem «matar todos os meninos de Belém e de todo o seu território, da idade de dois anos para baixo» (Mt 2, 16). Foi o derradeiro ato da sua vida; com efeito, semanas depois, Herodes morria e os territórios por ele controlados foram divididos, tendo seu filho Arquelau herdado a Judeia. Este facto foi comunicado a José, que regressou do Egito com a família, tendo no entanto o cuidado de evitar a Judeia, com receio de que Arquelau tivesse herdado o temperamento desconfiado do pai; regressou pois à Galileia, à cidade de Nazaré, por uma via indireta, que passava por Gaza e a Samaria.
A história do nascimento de Jesus, com as visitas dos pastores e dos magos, constitui o lado idílico do Natal, conferindo à infância de Jesus um maravilhoso ambiente, típico das histórias de encantar, que conquistou toda a gente, novos e velhos, nos últimos 2000 anos. Já o massacre dos inocentes recorda‑nos o lado mais negro da vida de uma província obscura do império romano no século I d.C., caracterizada por um exercício ilimitado e atroz do poder, pela ausência – na prática – de qualquer tipo de legislação de controlo do mesmo poder, bem como pelo desprezo que os poderosos tinham pela vida humana, incluindo a vida dos mais frágeis. Foi esta realidade da perversidade humana que Jesus veio corrigir, contra a qual se manifestou por palavras e obras, e que acabou por se abater sobre Ele; o massacre dos inocentes é um antegosto do Calvário.
Lucas (1, 13‑23; 59‑65) faz‑nos saber que algumas pessoas foram capazes de prever o futuro de Jesus. Conta o evangelista que Zacarias, o marido de Isabel, teve dificuldade em acreditar nas palavras do anjo Gabriel, quando este lhe comunicou que a mulher estava grávida daquele que seria São João Batista, tendo emudecido como castigo por essa falta de fé. Quando, porém, o filho nasceu e foi circuncidado, Isabel recusou‑se a dar‑lhe o nome do pai, declarando que a criança se chamaria João; os familiares e os vizinhos protestaram, observando‑lhe: «”Não há ninguém na tua família que tenha esse nome!” Então, por sinais, perguntaram ao pai como queria que ele se chamasse.» Para espanto de todos os presentes, Zacarias, «pedindo uma placa, escreveu: “O seu nome é João.” E todos se admiraram.» Mas mais ainda se admirariam ao verificarem que «imediatamente se lhe abriu a boca, se lhe desprendeu a língua e começou a falar, bendizendo a Deus». Porém, à semelhança de vários incidentes relacionados com a história de Jesus, também estes acontecimentos felizes foram ensombrados pelo mundo de ameaças que os rodeava; com efeito, a notícia deste invulgar nascimento chegou aos sempre desconfiados ouvidos de Herodes que – de acordo com uma tradição muito antiga, publicada pelos primeiros padres, nomeadamente Orígenes – mandou matar Zacarias «entre o Templo e o altar». É por isso que o pai de João Batista é venerado como mártir por antecipação.
Havia outro sacerdote de muita idade que prestava serviço do Templo, um homem de nome Simeão; relata São Lucas que ele «era justo e piedoso» e acreditava firmemente no advento do Messias. Mais do que isso, «tinha‑lhe sido revelado pelo Espírito Santo que não morreria antes de ter visto o Messias do Senhor» (2, 25‑26). Quando Maria e José se dirigiram ao Templo a fim de procederem à purificação ritual a que Maria devia ser sujeita na sequência do parto, bem como à circuncisão de Jesus – uma e outra previstas na lei judaica –, era Simeão quem ali se encontrava; o velho tomou o Menino nos braços, deu glória a Deus e exclamou, com uma série de frases poéticas que reverberaram ao longo das gerações (2, 29‑32):
Agora, Senhor, podes deixar o teu servo partir em paz, segundo a Tua palavra,
Porque os meus olhos viram a Salvação,
Que preparaste em favor de todos os povos:
Luz para iluminar as nações e glória de Israel, Teu povo.
Mas, prossegue Lucas (2, 34‑40), voltando‑se para Maria, Simeão acrescentou uma profecia onde estava contida a entoação sombria que acompanha todos os momentos de alegria que pontuam os diversos episódios do começo da vida de Jesus: «Este Menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel […]; uma espada trespassará a tua alma, a fim de se revelarem os pensamentos de muitos corações». A Simeão veio então juntar‑se uma mulher de idade avançada chamada Ana, que Lucas diz tratar‑se de uma «profetisa» que fora casada e permanecera «viúva até aos oitenta e quatro anos», «servindo a Deus, noite e dia, com jejuns e orações». Também ela reconheceu na criança o Redentor, e as previsões e advertências de Ana e Simeão foram juntar‑se às restantes palavras que Maria guardava no seu coração; com efeito, a Mãe de Jesus não terá deixado de notar que, expandindo as profecias contidas nas Escrituras, seu Filho seria uma «luz para iluminar as nações», uma luz para todo o género humano e não apenas para os judeus, e que os sacrifícios a que Ele seria sujeito seriam para ela uma espada a trespassar‑lhe a alma. E, enquanto «o Menino crescia e Se robustecia, enchendo‑Se de sabedoria», Maria terá passado muitas horas de angústia a refletir no destino que estava preparado para Ele e nas dores atrozes que, a par do júbilo, tal destino lhe traria também a ela.
Maria ainda narrou a Lucas outro episódio de relevo (2, 42‑51), que confirmou as esperanças que depositava em seu Filho, mas que ao mesmo tempo a deixou intrigada. Ela, José e Jesus formavam um trio, a que a devoção cristã deu o título de Sagrada Família; na casa de Nazaré vivia‑se um ambiente de grande piedade, enquadrado por muita oração, sendo as festas e práticas judaicas meticulosamente respeitadas. Nomeadamente, iam todos os anos a Jerusalém na festa da Páscoa, oferecer um sacrifício no Templo, o que dá a entender que José era um artífice de sucesso e que a família vivia numa situação de relativo desafogo, porque se tratava de uma viagem longa e dispendiosa, que o obrigava a parar de trabalhar durante várias semanas; a peregrinação anual era feita na companhia de «parentes e conhecidos». Quando Jesus chegou aos doze anos, os pais acharam que podiam deixá‑lo à vontade na cidade. O Templo, reconstruído por Herodes a uma escala gigantesca, era um vasto labirinto de pátios, salas e corredores, e a própria Jerusalém uma cidade imponente de palácios e fortes, com uma elevada concentração de casas de habitação. Quando chegou o momento de empreenderem a viagem de regresso, «o Menino ficou em Jerusalém sem que os pais o soubessem»; ambos presumiram que Ele estivesse com os amigos, que seguisse no comboio de mulas e burros, e «fizeram um dia de viagem» antes de se aperceberem, subitamente assustados, de que Ele tinha ficado para trás, de que se encontrava ainda naquela cidade, santa e perversa.
Diz Lucas que, depois de O terem procurado freneticamente durante três dias, «encontraram‑nO no Templo, sentado entre os doutores, a ouvi‑los e a fazer‑lhes perguntas. Todos quantos O ouviam estavam estupefactos com a Sua inteligência e as Suas respostas», uma observação que revela, sem dúvida, o orgulho de uma Mãe que adorava o Filho. Mas a conversa que se seguiu é um tanto diferente, inesperada mesmo: Maria censura a Jesus a sua falta de consideração: «Filho, porque nos fizeste isto? Olha que Teu pai e eu andávamos aflitos à Tua procura!» Ao que Jesus lhe responde: «Não sabíeis que devia estar em casa de Meu Pai?» E Lucas acrescenta: «Eles não compreenderam as palavras que lhes disse». É digno de nota que as primeiras palavras de Jesus que chegaram até nós sejam tão coerentes com a sua vida e a sua missão, que consiste em se dedicar às coisas de Deus; e, embora Maria lhe refira José como seu pai, Jesus tem perfeita consciência de que seu Pai é Deus, e não hesita em o afirmar, não fazendo qualquer esforço para ocultar esse facto.
Maria, acrescenta São Lucas, «guardava todas estas coisas no seu coração». E é aqui que o relato da conceção, do nascimento e da infância de Jesus – relato que foi da autoria de sua Mãe – termina de forma abrupta. Com efeito, depois deste episódio, Jesus regressou a Nazaré com seus pais «e era‑lhes submisso»; em seguida, Lucas salta dezoito anos da vida de Jesus, passando ao batismo por São João. Os outros evangelistas também não nos revelam mais nada, de maneira que, infelizmente, não sabemos absolutamente nada do que Jesus disse, dos sítios por onde andou e da existência que levou durante mais de metade da sua vida.
Podemos ter a certeza de que foi bem instruído; todas as crianças judias o eram, desde que tivessem inteligência para tal e as circunstâncias o permitissem, e a família de Jesus vivia com um certo desafogo. Sabemos que sabia ler, porque o profundo – e ocasionalmente cético – conhecimento que tem das Escrituras é uma prova de que terá estudado e meditado profundamente nos textos desde muito cedo; de tal maneira que, aos doze anos, foi perfeitamente capaz de participar numa discussão informada acerca do respetivo conteúdo. Também sabemos que sabia escrever, embora só tenhamos informação de que o tenha feito uma vez, em certa ocasião em que impediu um grupo de judeus – puritanos, é certo, mas hipócritas – de lapidarem uma mulher apanhada em adultério enquanto escrevia (talvez uma lista dos pecados deles) no pó da terra; o facto de ter conseguido fazê‑lo – pois não é fácil escrever na terra –, e de ter provavelmente sido lido sem qualquer dificuldade, dá a entender de que teria uma letra clara e legível, uma letra quase de escriba profissional. Mas não nos chegaram exemplos da letra de Jesus; nem sabemos o que era que Ele lia, para além das Escrituras.
Mas sabemos algumas coisas, dos relatos de afirmações suas que nos chegaram: que era um homem civilizado, culto, instruído, que escolhia as palavras com grande cuidado e precisão, com delicadeza, exatidão, tato – tudo indicações de que conhecia bem, tanto a literatura religiosa, como a secular. Por mim, estou convencido de que, para além do aramaico, que era a sua língua materna, e do hebraico – que, como judeu culto e observante da lei que era, também lia e falava –, Jesus conhecia ainda o latim e o grego. Por outro lado, desconfio de que o hábito das formulações poéticas, embora nascesse de um talento natural (aliás comum a sua Mãe), resultava de uma constante leitura de obras poéticas, muitas das quais saberia de cor; poesia essa que, a meu ver, não se limitava aos textos hebraicos, como o Livro de Job – que é um livro extremamente poético – e os cânticos religiosos que são os salmos, abrangendo igualmente o tesouro dos poetas gregos que por esta altura circulava pelo império romano. Estou mesmo convencido de que Jesus saberia de cor passagens de Homero e de Eurípides, e possivelmente de Virgílio – mas tudo isto são apenas suposições baseadas em deduções.
Podemos presumir que, em muitos aspetos, Jesus terá sido autodidata. Com efeito, as suas palavras e os conceitos que usava não denotam qualquer tipo de deformação académica ou marca de um sistema; pode mesmo afirmar‑se que Ele repudiava esse género de coisas, da mesma maneira que detestava o legalismo nas doutrinas morais. A sua imaginação não tinha sido contaminada pelas salas de aula, que nunca frequentara, razão pela qual os críticos o desprezavam, considerando que era um inculto. Afirma São João que, espantados com as doutrinas que Ele ensinava, os judeus do Templo perguntavam com ar superior: «Como é que Ele conhece as Escrituras sem ter estudado?» (7, 15). Não sabemos onde foi o jovem Jesus buscar os livros por onde estudou; mas sabemos que os materiais escritos eram comuns no mundo judaico, mesmo numa cidade de província como Nazaré.
Menos conjetural é o facto de Jesus ser um homem com vastos conhecimentos, em especial das artes e da agricultura, como se torna manifesto pelo à vontade com que menciona, sempre de forma adequada, estes domínios práticos nas suas parábolas e doutrinas; Jesus tinha uma vasta amplitude de referências, sendo essa uma das razões pelas quais tantas pessoas apreciavam ouvi‑lo, muitas vezes apanhadas por alguma alusão à sua própria atividade. Mas tenho a impressão de que estes conhecimentos eram de experiência feita. Efetivamente, a morte de José, que ocorreu durante os anos sobre os quais nada sabemos, terá ocasionado a dissolução do lar de Nazaré, e Maria terá ido viver com algum dos parentes; Maria tinha uma família numerosa, na qual se contava uma irmã com filhos adultos, os chamados irmãos de Jesus.
É natural que, por esta altura, Jesus – que tinha evidentemente decidido não seguir a vida de carpinteiro na oficina de José – tenha saído de casa para ir adquirir experiência do mundo, a fim de, em devido tempo, melhor levar a cabo a missão que seu Pai lhe tinha confiado. Não temos meios de saber o que foi que Ele fez. Há quem diga que se juntou à comunidade dos essénios, mas a verdade é que o seu comportamento e as suas doutrinas são tão diferentes daquilo que os manuscritos do Mar Morto nos revelam acerca desta seita, que não é possível considerar seriamente tal hipótese. Como também não é provável que tivesse pertencido a outra seita religiosa, e muitas eram as que então existiam, porque o tipo do zelota é completamente alheio ao seu caráter: Jesus não apresenta nenhum dos sinais psicológicos do clérigo, do monge ou do anacoreta; pelo contrário, é uma pessoa moderada, que não aprecia uma religiosidade e uma observância excessivamente rigorosas, que se dá bem com homens e mulheres de todos os tipos, condições e temperamentos, e que não procura a solidão, a não ser para rezar. Jesus é um espírito gregário, convivial, sempre à procura de companheiros e de novos amigos.
Tudo isto faz supor que terá tido uma vasta experiência de vários géneros de atividade. Parece‑me provável que Ele tenha procurado deliberadamente desempenhar múltiplas tarefas, a fim de adquirir conhecimentos, não apenas do mundo do trabalho, mas também de diversos tipos de homens e mulheres; terá sido aliás por isto que terá adiado o começo da sua missão até aos trinta anos. Terá quase de certeza trabalhado na agricultura, porque sabia imenso sobre essa área. Também me parece que terá sido pastor durante algum tempo; com efeito, as ovelhas e o cuidado dos rebanhos estão de tal maneira presentes nos seus ensinamentos, e a natureza do Bom Pastor é tão crucial na sua doutrina, que me parece que esta vocação profissional teria ocupado um lugar especial, não apenas na sua experiência pessoal, mas também nos seus afetos – aqueles homens rudes que lhe rodearam o berço na noite do seu nascimento fizeram dele, por assim dizer, um pastor honorário para toda a vida. Esta experiência de pastor permite ainda explicar a preferência que Jesus denota pelos lugares altos nos momentos mais importantes da sua vida, e o hábito que tinha de interromper o convívio habitual com períodos de solidão destinada à oração.
É isto que sabemos acerca do nascimento e da infância de Jesus, e aquilo que podemos razoavelmente deduzir a respeito da sua vida entre os doze e os trinta anos. Nessa altura, Ele deu início ao seu ministério, passando a ocupar o lugar de protagonista dos relatos evangélicos.